sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Musculação e overtraining (sobretreinamento)


Escrito por Felipe Nassau e Samuel   
sábado, 16 de julho de 2011
ImageDiversos estudos científicos têm demonstrado inúmeras evidências de que treinos mais curtos e intensos são mais efetivos e seguros. Nesse sentido, o número de adeptos dessa filosofia tem aumentado consideravelmente. Porém, o uso inadequado dessas estratégias pode ser tão lesivo e improdutivo quanto os treinos longos. Talvez por uma pressa por resultados ou então por negligência às evidências científicas, em muitos casos, parece que os treinos intensos têm ocorrido sob os mesmos paradigmas dos treinos volumosos, o que pode causar danos catastróficos à saúde, além de resultados pífios, sendo o overtraining a causa número um de lesão nos esportes sem contato. Esse quadro tem sido comum não só em atletas, mas também em praticantes recreativos de musculação. 
 
O overtraining é um estado crônico de estresse físico no qual o indivíduo não se recuperou dos estímulos realizados nas sessões de treino de modo cumulativo. Pode ser também uma falha entre o tempo de descanso necessário para a recuperação muscular ou, então, a falta de períodos regenerativos no planejamento do treinamento (periodização). Sabe-se que esse estado de fadiga não está relacionado unicamente com treinos intensos ou com danos causados às fibras musculares nos treinos, mas, sim, a uma incoerência entre esses danos e à incapacidade de um reparo do organismo. Podemos dizer que isso está diretamente relacionado ao tempo de intervalo entre as sessões de treino, mas também pode ser algo diretamente ligado à qualidade do sono, uso de medicamentos, dieta inadequada e estresse.

Outra causa comum disso é: para muitos praticantes, após algum tempo se esforçando para aprender a treinar com intensidade máxima, realizar treinos leves pode parecer improdutivo e desprazeroso, o que os faz muitas das vezes, terem receio de realizar treinos de baixa intensidade (acredite: após aprenderem a treinar pesado, as pessoas começam a gostar disso!).

Visto que a maioria dos estudos sobre recuperação de treinos máximos evidenciam que o músculo dificilmente se recupera em menos de 5 ou 6 dias, assim, parece muito incoerente (e irresponsável) repetir a sessão de treino para os mesmos grupamentos duas vezes por semana (ou até mais) na mesma intensidade, a não ser que haja longos períodos regenerativos após tais fases. Mas o que infelizmente tem ocorrido são treinos intensos, freqüentes, realizados todas as semanas por um longo tempo. Normalmente, até a pessoa perder a motivação para treinar ou lesionar-se.
Dor tardia e recuperação :

Deve-se levar em conta que o fim ou a ausência da dor muscular tardia (dor muscular sentida horas ou dias após o treino) não podem ser usados como parâmetros de recuperação. A sensação de disposição ou de achar que está bem para repetir um treino intenso pode não condizer com a real situação da recuperação do treino anterior.

As dores tardias podem ser atenuadas de acordo com o nível de treinamento, ou até mesmo devido a intervalos muito curtos de uma sessão de treinamento para a outra, o que pode proporcionar, equivocadamente, essa sensação de recuperação plena. Estudos sugerem que a dor muscular tardia representa a fase catabólica da recuperação, sendo assim, o indivíduo só começa a obter os ganhos musculares após passar as dores (lembrando que as dores tardias podem ser atenuadas pelos fatores citados) tornando sem sentido alguém treinar uma musculatura ainda dolorida ou recém recuperada.

Por outro lado, para muitos praticantes, a dor tardia passa a sensação de funcionalidade do treino e fica muitas vezes a decepção ou a sensação de que o treino não fez o efeito necessário quando não se gera pouca ou nenhuma dor tardia, comum em treinos de intensidades mais baixas encaixados nas fases regenerativas de uma periodização. Porém, o quadro de recuperação pós-treino, não deve ser visualizado como unicamente a recuperação da última sessão de treinamento, e sim como um quadro crônico instalado por todos os treinamentos anteriores executados no planejamento.

Como curiosidade, há estudos que demonstram que o músculo pode permanecer com microlesões 10 dias após uma sessão de treino e há autores que sugerem descansos de até 14 dias para cada grupamento para potencializar a hipertrofia muscular . Talvez as intensidades utilizadas nessas pesquisas foram muito elevadas para a grande maioria dos praticantes mas será que é possível recuperar-se em 48h ou 72h, em treinos recreativos, como muitos têm preconizado?
Efeitos físicos do overtraining:

Um dos primeiros efeitos do overtraining é a queda na dosagem de glutamina plasmática. A redução desse aminoácido causa um impacto negativo no sistema imune, impedindo a reprodução dos leucócitos (células de defesa) e a produção de anticorpos, o que dificulta a recuperação muscular e aumenta a chance de contrair infecções oportunistas.

O sistema imune tem uma função importante na recuperação muscular, sendo responsável pela resposta inflamatória que induzirá um reparo local. Desse modo, o overtraining, prejudicando o sistema imune, prejudica o anabolismo.

O cortisol é um hormônio produzido em situações de estresse físico e psicológico e se mostra elevado em quadros de overtraining. Tal hormônio é hiperglicemiante (estimula o fígado a liberar mais glicose no sangue). Esse mecanismo se dá a partir da quebra de proteínas musculares (ou outras proteínas). Nesse caso, a insulina aumenta também, de modo crônico, afetando o metabolismo celular de modo a dificultar o emagrecimento (mesmo com dietas hipocalóricas).

Este desequilíbrio metabólico tende a alterar os lipídios sanguíneos, aumentando o LDL-colesterol, e reduzindo o HDL-colesterol, o que além de ser um fator de risco para doenças cardiovasculares dificulta o emagrecimento. Além disso, ocorre o aumento dos níveis de amônia, uréia e ácido úrico (que são tóxicos), advindos dos aminoácidos utilizados para a nova produção de glicose (gliconeogênese). Sendo assim, temos o primeiro ciclo de feedback positivo (lembre-se: o organismo saudável funciona num sistema de feedback negativo).

A hiperglicemia também é responsável pela redução de uma enzima importante na reprodução celular e na defesa contra espécies reativas de oxigênio (radicais livres ou E.R.O.), a G6PDH. Essa enzima, além de ser o ponto de controle para formação de ribose5-P (importante para a produção de RNA e DNA), também é crucial na produção da coenzima NADPH, que combate as E.R.O. Nesse caso, mais dois ciclos de feedback positivo (ruim) se retroalimentam.

O aumento do hormônio cortisol também está relacionado com pioras no sistema de sono e vigília, reduzindo a qualidade do sono. Sendo assim, a disposição durante o dia tende a ser menor e gerar um quadro de sonolência diurna, o que afeta diretamente a capacidade de realizar trabalhos físicos e mentais. Isso prejudica não só o treino, mas também, os estudos, o trabalho e as relações sociais, podendo gerar mais estresse psicológico, que por sua vez, aumenta a liberação de cortisol novamente.

Os nossos principais hormônios reparadores, o GH (hormônio de crescimento) e a testosterona, têm sua produção mais ativa durante o sono noturno. Piorando o sono, a produção desses hormônios é reduzida. O GH é um hormônio importante na reparação de tecidos e células danificadas e aumenta a taxa de consumo de gordura pelo organismo. Testosterona também é importante na reparação de tecidos e favorece uma boa resposta imune. O mau funcionamento destes hormônios favorece a perda de massa muscular, aumento da gordura corporal, aumento de lesões ósseas, musculares e articulares, além de deprimir o sistema imune e reduzir a libido, o que pode comprometer a função reprodutiva.

Com toda essa sobrecarga no organismo, agindo constantemente sob situação de estresse, a pressão arterial e a freqüência cardíaca também se mostram elevadas, sendo mais um fator de risco para doenças cardiovasculares e possível infarto do miocárdio.

Outro equívoco comum é utilizar o mesmo protocolo para indivíduos diferentes. Um indivíduo que por sua carga de estresse diária dorme menos está mais propenso a um sobretreinamento que um indivíduo com hábitos mais saudáveis. Pessoas em fase de emagrecimento (dieta hipocalórica) têm dificuldades maiores para se recuperar entre um treino e outro. Logo, é necessário adaptar os preceitos do treinamento a cada indivíduo.

Importância da periodização


É coerente afirmar que bons protocolos funcionem na grande maioria das pessoas, mas o modo de aplicar esses mesmos protocolos pode ser diferenciado. Não há uma regra geral a não ser a lógica de solução de problemas.

Estudos aprofundados em treinamento esportivo e nas ciências que o compõem demonstrarão a direção de quais métodos utilizar. O passo seguinte é realizar uma triagem sobre qual o grau de treinamento do indivíduo, se ele já não se encontra em overtraining, quais seus objetivos, e como os fatores externos podem interferir (sono, estresse, dieta, medicamentos). Feito isso, o treinamento deve ser planejado com as devidas aplicações de carga e períodos de recuperação adequados. Mas, mesmo com um bom planejamento, as coisas podem dar errado. Assim, é importante ter alguns pontos de controle de evolução de treinamento (composição corporal, força, flexibilidade, capacidade de recuperação das vias de fornecimento de energia). Caso o resultado, mesmo quando bom, não seja coerente com o planejado, é necessário descobrir onde estão as possíveis falhas e refazer os planos de treino. É aí onde se encontra a magia do treinamento e que o torna ainda mais desafiador.

Conclusão:

Mesmo com a informação de que o treinamento intenso é mais seguro que os treinos moderados e volumosos e menos propensos a promover o overtraining, atualmente, devido ao uso de conhecimentos superficiais sobre treinamento esportivo, parece surgir uma forma híbrida de treinamento. Os treinos intensos e freqüentes. Ou seja, treinos pesados utilizados sob o paradigma dos treinos moderados, com pouco intervalo entre sessões. Isso pode arriscar não só a saúde física do indivíduo, mas também a saúde mental e social, indo contra todos os parâmetros indicados pela organização mundial de saúde. Além disso, podem até colocar a vida em risco, principalmente quando falamos em grupos especiais (nos quais o treino intenso é indicado).

O quadro de overtraining não é desencadeado apenas por excesso de treinamento, mas sim por um uso inadequado em relação ao grau de treinabilidade do indivíduo, hábitos de vida, dieta, estresse, sono, uso de medicamentos. Porém, a evolução do quadro de sobretreinamento é sempre causada por uma negligência aos preceitos do treinamento desportivo. Não basta um bom planejamento. É necessário um bom acompanhamento com pontos de controle de evolução, e caso seja necessário, refazer e readaptar o treinamento. Tratando-se de praticantes mais arredios, é função do profissional de educação física especializado esclarecer a importância de cada fase de uma periodização para que haja confiança e credibilidade. Isso garante uma evolução saudável. Na hora de se exercitar, busque um profissional habilidoso para evitar os transtornos de um possível overtraining. Treino deve ser exato! Nem muito, nem pouco!

Se nós pudéssemos dar a cada indivíduo o direito da nutrição e do exercício, nem pouco nem muito, nós encontraríamos o caminho mais seguro para a saúde. (Hipócrates)


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Autores: Felipe Nassau e Samuel
Grupo de Estudos Avançados em Saúde e Exercício
Brasília / DF

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