sábado, 10 de setembro de 2011

"A Internet nos ajuda, mas ela sozinha não dá conta da complexidade do aprender"

A afirmação é do professor José Manuel Moran. Ele fala sobre o uso da Internet na educação, fundamentado seu pensamento na "interação humana", 
de forma colaborativa, entre alunos e professores.


José Manuel Moran é um dos maiores especialistas brasileiros no uso da Internet em sala de aula. Por isso, não se espere dele o deslumbramento do marinheiro de primeira viagem. Timoneiro experiente, ele conduz o barco devagar. Para o educador que acessa a rede pela primeira vez, ele adverte que nem sempre a maré está para peixe. "A Internet nos ajuda, mas ela sozinha não dá conta da complexidade do aprender hoje, da troca, do estudo em grupo, da leitura, do estudo em campo com experiências reais". A tecnologia é tão-somente um "grande apoio", uma âncora, indispensável à embarcação, mas não é ela que a faz flutuar ou evita o naufrágio. "A Internet traz saídas e levanta problemas, como por exemplo, saber de que maneira gerenciar essa grande quantidade de informação com qualidade", insiste. 

A questão fundamental prevalece sendo "interação humana", de forma colaborativa, entre alunos e professores. Continua a caber ao professor dois papéis: "ajudar na aprendizagem de conteúdos e ser um elo para uma compreensão maior da vida". Se o horizonte é o mesmo, os ventos mudaram de direção. É preciso ajustar as velas e olhar mais uma vez a bússola. E José Manuel Moran foi traçar rotas em mares nunca dantes navegados. A novidade é que "hoje temos a possibilidade de os alunos participarem de ambientes virtuais de aprendizagem". O grande desafio é "motivá-los a continuar aprendendo quando não estão em sala de aula". 

Os educadores que não quiserem se lançar ao mar, muito apegados à terra firme, poderão ficar a ver navios. Mas não há mais porto seguro: o oceano de informações que a Internet disponibiliza aos alunos obrigará os professores a se atualizar constantemente e a se preparar para lidar com as múltiplas interpretações da realidade. Espanhol que atracou no Brasil, Moran abandonou por alguns momentos sua tripulação do curso de Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da USP e nos concedeu esta entrevista. 

O senhor diz que não se deve esperar soluções mágicas da Internet. Que expectativas devemos ter das novas tecnologias na educação? 

Prof. José Manuel Moran - Nós esperamos que a tecnologia — teoricamente mais participativa, por permitir a interação — faça as mudanças acontecerem automaticamente. Esse é um equívoco: ela pode ser apenas a extensão de um modelo tradicional. A tecnologia sozinha não garante a comunicação de duas vias, a participação real. O importante é mudar o modelo de educação porque aí, sim, as tecnologias podem servir-nos como apoio para um maior intercâmbio, trocas pessoais, em situações presenciais ou virtuais. Para mim, a tecnologia é um grande apoio de um projeto pedagógico que foca a aprendizagem ligada à vida. 

Apesar de ser professor de novas tecnologias, o senhor acredita que, antes disso, há uma mudança mais urgente a ser feita no modelo de educação. Qual seria essa mudança? 

Prof. José Manuel Moran - O que estamos vendo é que formas de educar com estrutura autoritária não resolvem as questões fundamentais. A questão não é tecnológica, mas comunicacional. A tecnologia entra como um apoio, mas o essencial é estabelecer relações de parceria na aprendizagem. Aprende-se muito mais em uma relação baseada na confiança, em que alunos e professores possam se expressar. Criar e gerenciar esse ambiente é muito mais importante que definir tecnologias. Embora eu trabalhe com elas, noto que o foco está na interação humana, presencial ou virtual. Preocupa-me muito a dificuldade que temos em estabelecer relações participativas, porque todos nós carregamos estruturas tremendamente autoritárias, sendo submissos ou dominadores, e reproduzimos isso na escola. A cultura da imposição, do controle, é talvez a barreira mais difícil de derrubar no processo pedagógico. 

O senhor faz uma distinção entre ensino e educação, esta última sendo a integração do ensino com a vida. É evidente a maneira como as novas tecnologias podem contribuir para o ensino. Mas como elas podem contribuir para a educação? 

Prof. José Manuel Moran - Quando falamos de ensino, focamos a aprendizagem de alguns conteúdos. A educação é um processo muito mais integral, que nos ocupa a vida toda, e não somente quando estamos na escola. E o professor tem esses dois papéis: ajudar na aprendizagem de conteúdos e ser um elo para uma compreensão maior da vida, de modo que encontremos formas de viver que nos realizem e desenvolvam nossas capacidades. Isso não depende da tecnologia, mas da atitude profunda do educador e do educando, de ambos quererem aprender. A tecnologia pode ser útil para integrar tudo que eu observo no mundo no dia-a-dia e para fazer disso objeto de reflexão. Ela me permite fazer essa ponte, trazer os conteúdos de forma mais ágil e devolvê-los de novo ao cotidiano, possibilitando a interação entre alunos, colegas e professores. 

Uma de suas experiências mais bem-sucedidas consiste em partilhar os resultados das pesquisas escolares pela Internet. Que mudança isso provoca no rendimento dos alunos? 

Prof. José Manuel Moran - É uma concepção do aprender de forma cooperativa e não competitiva. A aprendizagem estava muito voltada só para conseguir notas, ver quem chegava primeiro. Dentro dessa visão — que não se dá apenas com a tecnologia, mas também na sala de aula comum —, a proposta é colocar a interação na prática. Hoje temos a possibilidade de os alunos participarem de ambientes virtuais de aprendizagem, tanto de uma forma simples, publicando um trabalho em uma página, quanto criando debates, fóruns ou listas de discussão por e-mail. Cada escola e cada professor, dependendo do número de alunos que ele tenha ou da situação tecnológica em que se encontra, pode buscar soluções mais adequadas. O importante é o foco, que o aluno e o professor sejam estimulados a fazer parte de um espaço virtual de referência que disponibilize o que é feito em sala de aula. Eu creio que essa área de visibilidade liberta a sala de aula do espaço e do tempo físico. Porque depois, fora da aula, pode-se encontrar um pouco do que foi dito pelo professor, o que foi feito pelos alunos. 

O senhor afirma que as novas tecnologias exigem muito esforço dos professores e, por outro lado, defende que "o aluno já está pronto para a Internet". Em que aspectos o aluno estaria em vantagem em relação ao professor? 

Prof. José Manuel Moran - Ele é privilegiado na relação que tem com a tecnologia. Ele aprende rapidamente a navegar, sabe trabalhar em grupo e tem certa facilidade de produzir materiais audiovisuais. Por outro lado, o aluno tem dificuldade de mudar aquele papel passivo, de executor de tarefas, de devolvedor de informações. Na prática, acaba assumindo um papel bastante passivo em relação às suas reais potencialidades. O aluno tem capacidade de ir muito além, ele está pronto. Porém, a escola impõe modelos autoritários, voltando ao começo, quando o professor controlava e o aluno executava. E isso não o motiva. Por isso, a mudança mais séria deve vir mesmo dos professores. O novo professor dialoga e aprende com o aluno. Isso pressupõe uma certa humildade que nos custa como adultos a ter. Nós queremos ter a última palavra. 

Novamente baseado em suas experiências em sala de aula, o senhor observa que muitas vezes a navegação é mais sedutora que o trabalho de interpretação e concentração que a pesquisa exige e o professor deve estar atento para evitar que os alunos sejam muito dispersos em suas pesquisas. Isso significa que o professor terá, diante da tecnologia, de reproduzir o modelo de controle a que o senhor se opõe? 

Prof. José Manuel Moran - Essa é uma questão difícil de resolver na prática. Muitos alunos estão numa fase da vida ainda de deslumbramento, estão curiosos. Eles não têm organização e maturidade para se concentrar em um só tema durante uma hora. Então eles abrem mil páginas ao mesmo tempo, se deixam naturalmente seduzir por certos temas musicais ou eróticos, conforme a sua idade. Esse conjunto de questões dificulta o trabalho com um tema específico. Essa também não é uma questão meramente da tecnologia ou do professor, mas da dificuldade de concentração diante de tantos estímulos. 

Há um paradoxo nessa questão. Há uma quantidade de informação quase inesgotável acessível pela Internet. Por outro lado, quando se é confrontado com esse volume de informação, há a tendência de dedicar menos tempo à análise pela compulsão de navegar e descobrir novas páginas. Como se pode contornar isso? 

Prof. José Manuel Moran - Em primeiro lugar, reconhecendo que há uma grande dificuldade. A Internet traz saídas e levanta problemas, como, por exemplo, saber de que maneira gerenciar essa grande quantidade de informação com qualidade e como encontrar no pouco tempo que temos em sala de aula, ou na interação via Internet, algo que seja significativo, que não seja somente lúdico. Porque o que interessa é se essa navegação me leva a uma compreensão maior da realidade. Do ponto de vista metodológico, procuro um equilíbrio: nem impor demais o processo, que amarra o aluno, nem deixar que as coisas aconteçam a seu bel-prazer. Eu trabalho com dois momentos. No primeiro, mais aberto, eu coloco um tema em discussão e o aluno procura a informação por si. Depois de um certo tempo, passamos a partilhar o resultado das pesquisas, focamos um determinado artigo ou outro material, para que não fique muito disperso. Mas é importante que os alunos não atendam somente a uma determinação prévia do professor. Creio que esse pode ser um caminho para minimizar a clara tentação de dispersão na pesquisa via Internet. A Internet reforça a tendência dispersiva que os alunos têm no cotidiano, quando eles ficam estudando e ouvindo música, tudo ao mesmo tempo. 

Outro equilíbrio que o senhor considera difícil de alcançar é entre o deslumbramento dos alunos pelas novas tecnologias e a resistência de alguns dos professores a esses novos métodos de acesso à informação. 

Prof. José Manuel Moran - Eu percebo que as atitudes vão mudando aos poucos, que já houve resistência maior. Mas há professores que inconscientemente fazem o mínimo possível para utilizar a tecnologia, no máximo usam o Word. Eles não usam técnicas de pesquisa ou de apresentação mais avançadas em sala de aula, nem trabalham com criação de páginas. Então há uma parte dos professores de escolas particulares que, mesmo tendo laboratórios e acesso à Internet, resistem a métodos que não sejam tradicionais. Por outro lado, há os que descobrem as novas mídias e esquecem uma série de formas que podem ser interessantes em sala de aula, preferindo sempre jogar os alunos no laboratório, como se fosse uma grande solução. A Internet nos ajuda, mas ela sozinha não dá conta da complexidade do aprender hoje, da troca, do estudo em grupo, da leitura, do estudo em campo com experiências reais. Equilibrar o melhor do ensino presencial, o estarmos juntos, e o melhor do espaço virtual é básico. Mas ninguém teve experiência até agora com o equilíbrio desses ambientes. Antes aprendíamos juntos apenas em sala de aula, e o aluno tinha de se virar para fazer suas atividades quando não estava na escola. Hoje podemos aprender quando não estamos fisicamente juntos. 

O senhor atribui essa resistência ao fato de as novas tecnologias colocarem em xeque a posição do professor como detentor do saber. O aluno pode facilmente pesquisar algum tema e ver que há interpretações divergentes e que aquilo que o professor fala pode não ser bem assim. O senhor sente esse receio nos professores com os quais convive? 

Prof. José Manuel Moran - O professor, desde que surgiu o livro, sempre teve um pouco de receio de que o aluno aprendesse outras versões além da dele. Só que hoje você tem muitas outras formas de informações em qualquer mídia, e a Internet agrava ainda mais a sensação de que o aluno pode encontrar informações que o professor não tem. Para o professor inseguro, é uma espécie de desafio encontrar uma prática que não seja a do controle. A tentação desse tipo de professor é fechar em cima de uma única versão. O professor mais maduro trabalha com múltiplas visões, tentando relativizar nosso conhecimento, mostrando que estamos construindo algo que é provisório. A nossa visão agora é esta: eu aprendo com o que o outro me traz. Essa visão é muito mais tranqüila. É a aceitação de que eu não sou onipotente, que não tenho respostas para tudo, não sou enciclopédia. Eu aprendo melhor reconhecendo a minha ignorância. 

O senhor insiste em seus textos na importância da maturidade do professor ao lidar com a tecnologia. Quais são as experiências mais maduras que conhece de uso da Internet em sala de aula? 

Prof. José Manuel Moran - Hoje há muitas escolas que estão tentando encontrar saídas. O que a maior parte delas faz é colocar os alunos em contato com a Internet em laboratórios e depois buscar atividades principalmente entre grupos que não estão fisicamente juntos. No mundo inteiro se trabalha com esse tipo de projeto. A etapa mais avançada, que começa agora na minha opinião, é desenvolver o conceito de gerenciamento de aula, integrando o que é feito pelos alunos quando estão juntos e fazendo com que o processo de aprendizagem continue quando eles não estão mais juntos. Hoje há uma série de programas de gerenciamento de ambientes virtuais que ajudam a trazer temas para a sala de aula. No fundo, é uma página incrementada com ferramentas de chat e de fórum em que os alunos vão colocar seus textos. Há uma série de softwares como o Eureka, o First Class, o Web Ct e o Blackboard. 

De que forma o senhor utiliza esses ambientes virtuais mais integrados em seu processo pedagógico? 

Prof. José Manuel Moran - Coordeno um curso de pós-graduação semipresencial em que, em alguns momentos, nós nos encontramos e, em outros, interagimos somente através da rede: apresentamos textos, discutimos questões. Temos a relação de uma aula presencial para duas virtuais. É o desafio que vamos enfrentar pelo menos no nível superior, fase em que os alunos não precisam ir todos os dias à aula. O desafio é motivá-los a continuar aprendendo quando não estão em sala de aula. Também estou coordenando programas de educação a distância em São Paulo. Educar a distância, mas de uma forma em que haja troca e não somente repasse de informação, que não seja somente colocar conteúdo em uma página e depois cobrar uma atividade. Estimular o aluno a aprender em ambientes virtuais é outro grande desafio pedagógico que temos hoje. Haverá muita "picaretagem" de instituições que pensam que educação a distância é uma forma de ganhar dinheiro. 

O que o senhor teria a dizer a um diretor de escola pública, carente de recursos e com professores que nem sempre são os mais bem qualificados? Nessas circunstâncias é mais indicado investir em tecnologia ou centrar-se na capacitação de professores? 

Prof. José Manuel Moran - Eu acho que não podemos mais ficar apenas nos lamuriando da falta de condições. É verdade que um diretor de escola não pode fazer nada sozinho. Isso exige vontade e investimentos públicos nos três níveis. Estou coordenando uma equipe que desenvolve um programa de educação a distância na rede pública estadual de São Paulo para capacitar professores, supervisores de ensino e pessoas que trabalham em Oficinas Pedagógicas (OTP). São profissionais que estão mais em contato com novas tecnologias. Na verdade estamos fazendo a capacitação em serviços a distância, juntando a Secretaria de Educação e a Universidade de São Paulo, através de uma fundação chamada Vanzolini, com o apoio do governo federal, do ProInfo. 
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Para saber mais sobre o professor José Manuel Moran:
URL: http://www.eca.usp.br/prof/moran
E-mail: jmmoran@usp.br 

Caminhos para a nossa realização


Texto do meu livro Aprendendo a viver. 4ª ed. São Paulo: Paulinas, 2008, p.75-79.

Gerenciar nossa complexidade

Quem pode conhecer os múltiplos caminhos do ser humano?

Há mil possibilidades de realização e de fracasso. A vida nos ensina a não aplicar a todos situações individuais, localizadas. Queremos que todos caibam nos nossos moldes mentais. Avaliamos os outros a partir das nossas idéias. Há algo de universal em cada pessoa. Mas há também algo de especificamente pessoal, de diferente, em todo processo de generalização.

Alguns têm tudo para ser felizes – riqueza, beleza, cultura – e , por vezes, os vemos profundamente insatisfeitos, irrealizados.Outros têm tudo para ser infelizes – pobres, sem grandes atrativos, sem estudos – e vivem com garra, força, de forma otimista.

Vemos irmãos, com a mesma educação, que pensam e vivem de forma totalmente diferente. Relacionamentos que parecem ideais, em que todos apostam, às vezes viram um fiasco e outros, de pessoas que nada têm em comum, inexplicavelmente dão certo.

Cada um de nós tem uma grande margem de mistério para os outros e para nós mesmos. Não somos capazes de conhecer todas as nossas possibilidades e reações; como podemos acreditar que conhecemos as dos outros?

Que caminhos seguir?

Todos os caminhos são importantes se nos ajudam a crescer como pessoas, a compreender melhor, a realizar-nos mais, a vivenciar formas mais ricas de comunicação e amor.

O melhor que podemos fazer pela sociedade, pelo mundo, pela família e por nós mesmos é sermos pessoas mais evoluídas, mais maduras, mais humanas.
Podemos conhecer mais e experimentar novas formas de viver, pela ação e pela reflexão, pela intensa comunicação com pessoas e pelo isolamento, pela adesão a uma religião ou a uma filosofia humanista.

Ninguém tem o monopólio de como chegar ao conhecimento ou às chaves da realização pessoal.
1.  Uns podem chegar à realização pelo sofrimento – quando sabem enfrentá-lo
2.  Outros, pelo contato com pessoas interessantes, por leituras estimulantes ou pelo estudo.
3.  Uns, por formas diferentes de vivências religiosas: meditam, fazem ioga, se isolam, rezam
4.  Outros organizam eventos, promovem ações concretas, visíveis, coordenam ou participam de vários grupos...
Qualquer situação ou interação pode ajudar-nos a evoluir, dependendo de como a encaramos. Tudo pode ser-nos útil para o contínuo crescimento, se conseguimos incorporá-lo à nossa vida como aprendizado, como incentivo, como um degrau a mais; se sabemos superar o que tenta prender-nos, o que tenta desvalorizar-nos, humilhar-nos, derrotar-nos.Todos os caminhos são bons se nos ajudam a evoluir. Há porém, caminhos destrutivos: a fuga, a alienação, a humilhação, a emoção contínua negativa, a comunicação inautêntica.Cada um de nós descobrirá que pode combinar e equilibrar ação e reflexão, leituras e práticas, isolamento e interação, humanismo e religiosidade, a partir das características pessoais, da sua própria trajetória do passado até o presente, do seu universo mental e emocional específico.
Avançaremos mais se aprendermos equilibrar planejamento e criatividade; organização e inovação; gerenciamento responsável e abertura para o novo, para o inesperado.

Daremos saltos de qualidade no conhecimento se estivermos atentos aos múltiplos signos da vida. A vida é como um lento desfolhar de novos sentidos, de novos significados: cada camada descoberta nos leva a novas perspectivas, ao aprofundamento de novas dimensões.

Viver nesta atitude de desvendamento revelador é uma das experiências mais gratificantes que o ser humano pode sentir.Encontraremos os melhores caminhos se sempre estivermos serenamente atentos para aprender, abertos para a novidade de viver cada dia da melhor forma possível, em cada momento, agora; atentos para o incentivo, para o apoio pessoal e interpessoal, para não nos deixar empolgar demais com os sucessos nem nos abater com os problemas e eventuais “fracassos”.

Encontraremos os melhores caminhos se soubermos aprender com cada circunstância que se nos apresente e se estivermos atentos a tantas formas bonitas de aprender a crescer. Vamos fazer a nossa parte e deixar fluir, dar margem ao imponderável.
  • Ficar abertos para o novo. Aceitar as surpresas da vida, o que não esperávamos, tanto o “positivo” como o “negativo”.
  • Monitorar nossas vidas com carinho, afeto, atenção. Aceitar-nos plenamente, continuamente, incondicionalmente. Aceitar o que fomos, o que somos, o que seremos.
  • Rever o nossa passado como etapas de grande aprendizado, de evolução. Aceitá-lo como nosso, como algo que está em nós. Estar atentos aos sinais de impaciência, de crítica, de desânimo, de depressão.
  • Não nos obrigar a carregar pesos insuportáveis. Assumir os descontroles eventuais, a perda de sentido, as indefinições. Apoiarmo-nos sempre, esperar sempre, confiar sempre.
  • Incentivar-nos, dialogar permanentemente consigo mesmo, buscar apoio nas dimensões misteriosas do nosso universo, em tantas forças que interagem conosco, para poder perceber mais e mais a complexidade que nos rodeia.
  • Acreditar sempre em nós mesmos, em nosso fluir como pessoas, que há um sentido maior para o nosso dia-a-dia, que tudo contribui para o nosso aprendizado e para o nosso aperfeiçoamento.
  • Viver no presente, atentos ao futuro, mas sempre valorizando o que está acontecendo no aqui e agora, que nos acompanha e podemos transcender, mas nunca negar.
  • Procurar viver com simplicidade, menos apegados aos bens e ao poder. Ir na contramão do consumismo, da posse, da ostentação.
  • Ir na contramão da tendência de possuir, acumular, juntar, multiplicar bens, de ter de lucrar sempre, o mais possível, obsessivamente; das tendência de ostentar, mostrar status, luxo, poder, alto padrão de vida; da tendência de consumir, ter de comprar, de necessitar sempre de roupas, novidades, modas.
  • Ter o necessário e procurar necessitar de cada vez menos coisas. É importante ter sem possuir, sem apegar-nos, sem deixar-nos dominar pelos objetos, pessoas, pelo desejo do que não é nosso.
  • Comunicarmos da forma mais autêntica e aberta possível, colaborando para que haja maior entendimento e confiança. Manter um diálogo permanente com tudo que nos rodeia.
  • Contribuir para que haja um clima mais harmônico ao nosso lado, para sermos elementos de união, e não de discórdia.
  • Pedir desculpas a nós mesmos e desculpar-nos quando erramos, quando nos perdoamos, quando cometemos injustiças, críticas exageradas, julgamentos apressados. Viver no ritmo possível, no tempo possível, nas formas possíveis.
  • Mudar os aspectos da nossa vida até onde formos capazes, para encontrar nossa identidade, nosso estilo, nossa forma de comunicação e de gestão.
O importante é estar vivenciando continuamente processos de liberdade e de realização, em todas as dimensões, na medida em que formos capazes, em cada momento das nossas vidas.

Assim iremos nos tornando pessoas mais livres, marcantes e realizadas.

Diferentes formas de relacionamento


Texto do meu livro Aprendendo a viver. 4ª ed. São Paulo: Paulinas, 2008, p.50-52.

No relacionamento com os outros nos revelamos, descobrimos, aprendemos, ensinamos. Expressamos nos relacionamentos como nos vemos, o que somos, o que tememos, em que estágio estamos de desenvolvimento e realização. Encontramos todas as formas e graus de relacionamento. Uns vivem sozinhos, isolados; outros se relacionam de forma superficial, previsível, padronizada, enquanto que alguns conseguem comunicar-se de forma mais autêntica e plena. Há isolamentos produtivos e outros destrutivos.

Algumas formas de isolamento ajudam: períodos de reencontro consigo mesmo, de busca do equilíbrio, de novas sínteses. Cada pessoa tem sua forma de isolar-se. É importante que cada um encontre a forma confortável de estar consigo, de reencontrar-se, de reequilibrar-se.

Algumas experimentam formas mais ou menos graves de isolamento, de dificuldade em comunicar-se, de confiar seus sentimentos ao outro. Para essas pessoas o relacionamento é ameaçador, fruto, talvez, de experiências frustrantes prévias, de medo do fracassar, de serem traídas, de serem enganadas...
Geralmente o isolamento provoca formas de intenso reforço do imaginário, da fantasia, dos mecanismos projetivos, da comunicação virtual (comunicação por chats e outras formas que não exijam o contato físico).

Muitas pessoas desenvolvem formas de relacionamento relativamente satisfatórias, que preenchem algumas carências, dão segurança, conforto, apoio.

Algumas formas são mais superficiais, aparentes, ocasionais.

Outras avançam um pouco mais: conseguem manter um certo equilíbrio, se complementam em alguns pontos, mantêm uma atitude cooperativa, se revelam parcialmente, mas encontram dificuldade em vivenciar formas mais ricas de troca, de confiança, de conhecimento. 

A sociedade nos padroniza, abaixa nossas expectativas, nos mediocriza, nos induz a contentar-nos com pouco, com a exterioridade, com as aparências, com a superficialidade das coisas. Na sociedade é mais importante parecer do que ser, fingir do que mostrar-se verdadeiramente. Muitos relacionamentos são mais aparentes do que reais, mais superficiais do que profundos, mais acomodados do que criativos. Se o outro nos incomoda é sinal de que mexe em questões mal resolvidas dentro de nós. Culpar o outro pelo fracasso, pelos nossos problemas é a saída mais fácil e inútil. O outro pode contribuir, sem dúvida, para a deterioração do relacionamento. A questão é por que nós continuamos em relacionamentos problemáticos ou por que determinadas situações nos afetam tanto.O relacionamento entre duas pessoas pode ser o caminho para a realização mais plena ou para uma das maiores formas de tortura já inventadas até hoje. 

Todos temos muitas possibilidades que deixamos de lado. Acreditamos que não vale a pena ir além, que a "vida é assim mesmo", que o normal é isso, que já sabemos o suficiente para continuar agindo.

É importante aprender a quebrar as rotinas, os padrões, para buscar novas dimensões, desafios, percepções. 

Algumas pessoas - é difícil precisar o seu número, mas certamente não são a maioria - conseguem desenvolver relacionamentos profundos, duradouros, de crescimento na compreensão, conhecimento e intercâmbio em níveis cada vez mais ricos, que integram o sensorial, o intelectual, o emocional e o transcendental. É um relacionamento maduro, de pessoas em processo de tornar-se mais e mais livres e que realizam trocas mais avançadas baseadas na comunicação confiante e autêntica.

Aprendendo com o fracasso


Texto complementar do meu livro Aprendendo a viver. 4ª ed.
São Paulo:Paulinas, 2008.




Uma das experiências mais difíceis é aceitar que falhamos em algo que para nós tinha importância. Que um relacionamento em que apostávamos, fracassou. Que fomos avaliados negativamente ou demitidos de uma atividade em que pensávamos ser competentes.


Fracassar em áreas importantes para a nossa identidade como a afetiva ou a profissional sempre traz seqüelas. Um relacionamento longo que se desfaz, mexe com a nossa auto-estima, nos faz sentir inferiores, nos leva a olhar aos outros como mais perfeitos ("eles conseguem manter relacionamentos, por que eu não?"). A mesma situação se repete em relação a um emprego importante ("Por que eu tive que sair, se tantas ficaram?").

Muitas pessoas começam a definhar a partir de um fracasso importante. Não se recuperam de uma separação não desejada.

Se observamos toda a trajetória posterior constatamos como no fundo estavam reagindo a essa não aceitação do fracasso. A ferida, a mágoa ficou lá dentro, muitas vezes escondida, mas viva, agindo, provocando ressentimentos, doenças, perda de sentido.

A não aceitação do fracasso traz conseqüências desastrosas.

É difícil gostar intimamente de nós da mesma forma. Somos tentados a procurar culpados – o outro – ou, ainda pior –nós. Nem a acusação aos outros nos ajuda nem culpar-nos adianta.

Num processo afetivo há mil variáveis que interferem, do real e do imaginário, do passado e do presente.

Ficar remoendo antigas escolhas, possibilidades que não aconteceram, só complica. "E se eu tivesse feito..."

Todos sabemos que poderíamos ter tomado outras decisões, ter estado mais atentos a certas crises.

Só podemos olhar ao passado para aprender se o fizermos em clima de não cobrança, nem de nós nem do outro.

Podemos olhar como num videotape de um jogo de futebol não para punir-se pelas falhas, mas para perceber nossos mecanismos de sobrevivência, de relacionamento e aprender a melhorá-los.

E, se mesmo assim, a ferida estiver lá, se a dor continuar é importante reconhecê-la, aceitá-la, incorporá-la, não escondê-la.

Tudo o que escondemos, só nos complica.

Esconder o fracasso, a dor, a mágoa só os torna maiores, mais fortes e complicados.

Quem admite um fracasso mostra coragem para enfrentar mudanças. Muitos relacionamentos estão tanto ou mais fracassados e nem assim essas pessoas se atrevem a encará-los. Fazem mil ginásticas para ocultar o óbvio.

Aprender a fracassar, a enfrentar os insucessos é um dos caminhos para aprender a viver, a crescer, a encontrar novas formas de conviver com os outros, novas formas de trabalho e de atividade profissional.

O foco fundamental é tentar ir modificando-nos, até onde nos for possível, incorporando o fracasso como uma etapa da vida, como uma experiência de aprendizagem.

Aprendendo a viver


Texto do meu livro Aprendendo a viver. 4ª ed. São Paulo: Paulinas, 2008, p.81-83.


É importante procurar encontrar o sentido atual para a vida, o sentido do momento presente, encontrar o que dá significado ao nosso viver hoje.

Procuraremos fazer foco em atividades significativas. Esse foco pode mudar. Encontrar um sentido fundamental muda de pessoa para pessoa, de uma etapa para outra, mas é o que significa o viver, o que harmoniza nossa vida, que lhe confere uma nova dimensão.

Estaremos atentos para rever esse foco, essas atividades, esse sentido, para não ficar repetindo gestos vazios, fugas permanentes ou perda de novas descobertas.

O que é mais importante para nós hoje? Vamos defini-lo e seguir em frente e mais tarde reavaliaremos esse foco com simplicidade e honestidade.

A vida vai se revelando aos poucos, nas nossas inúmeras tentativas de entendê-la de experimentar caminhos, de estabelecer contatos, atividades. Cada coisa que fazemos, cada pessoa que conhecemos, cada leitura que nos chama a atenção traz contribuições para ampliar algum aspecto do nosso cotidiano e nos impulsiona a reavaliar algumas das nossas dimensões.

Esse é o lado fascinante e problemático do viver. Aprendemos de uma forma e, quando pensamos que “agora já sabemos”, temos de mudar, enxergamos novas perspectivas. Isso nos decepciona e ao mesmo tempo nos estimula.

Viver é estar sempre em permanente estado de construção, de readaptação, de aprendizado. Às vezes é doloroso, porque nos sentimos inseguros, perdido, vagando sem rumo.

Um pouco mais adiante encontramos novamente o significado do que estava solto, disperso, perdido. Pensamos: agora sim estamos nos trilhos, e mais tarde descobrimos que há novos ajustes a fazer, novas perdas de sentido e novas readaptações e ressignificações.

O curioso é que cada pessoa realiza este processo de um jeito, dentro da sua história pessoal, da sua própria complexidade. Por isso é tão importante aprender a viver e termos pessoas que nos ajudem a aprender a organizar melhor a nossa vida.

Vale a pena viver no ritmo das nossas descobertas, sem sofreguidão, impaciência ou ingenuidade, mas também enfrentando os medos, atentos a tudo, aprofundando a percepção do que nos é possível, desvendando novos níveis de compreensão de tudo o que vemos, ouvimos, sentimos, desejamos, amamos.

Aprender a confiar que tudo tem um sentido para a nossa construção como pessoas, que há um universo enigmático, muito superior à nossa capacidade de compreensão; que há muitas interferências que estão além da nossa imediata percepção, que muitos eventos, pessoas, situações podem contribuir para a ampliação do nosso conhecimento, para a nossa humanização.

Tentaremos aprender a desvendar uma parte deste nosso universo tão cheio de mistérios. Estaremos atentos a interpretar os sinais que mostram novos níveis de significação, com equilíbrio, sem acreditar ingenuamente em qualquer explicação ou pessoa, sempre abertos a novas revelações.
 
Podemos transformar a nossa vida em um paciente, emocionante e confiante processo de aprendizagem. Aprender a aceitar-nos plenamente como somos, sem mentir, sem procurar pretextos, sem buscar culpados. Ao aceitar-nos, começamos a mudar nossa vida.

Procurar fazer o melhor que sabemos em cada momento, sem cobranças negativas, sem expectativas irreais, sem pressões insuportáveis.

Viver no presente, no ritmo possível, no tempo possível, nas formas possíveis.
Vivemos melhor quando procuramos integrar tudo, relacionar tudo, com confiança e com humildade. Com a confiança de que podemos ir muito além de onde estamos, de que podemos realizar-nos em todas as dimensões da vida.

Com humildade, cientes de que somos frágeis, de que pouco conhecemos realmente, de que há uma margem enorme do imponderável, de situações "inexplicáveis", de encontros imprevistos. De que dependemos de muitas ajudas também para ir adiante. Se equilibramos a incerteza e a confiança encontraremos nossos melhores caminhos.

Viver é escolher e renunciar, avaliar e, ao mesmo tempo, reconhecer que nunca temos a certeza das decisões, porque não sabemos o que aconteceria com as outras escolhas que deixamos de lado.

Só mudaremos a sociedade, mudando as relações pessoais, interpessoais, comunitárias e sociais. O mundo só terá paz efetiva quando muitas pessoas e grupos viverem formas avançadas de comunicação, de intercâmbio aberto, de informação, de apoio, de comportamento ético.

Aprendemos na incerteza


Texto do meu livro Aprendendo a viver. 4ª ed. São Paulo: Paulinas, 2008, p.33-35.


Queremos ter certezas e vivemos sempre na incerteza. Buscamos verdades absolutas e percebemos que tudo muda, é relativo, que tem ângulos. É doloroso constatar nossa ignorância fundamental.

Somos como uma lancha no meio de um oceano: temos de decidir o rumo com poucos instrumentos de navegação; conhecemos alguns “macetes”, temos algumas experiências consolidadas, mas há uma grande margem de insegurança em cada opção, em qualquer campo, em qualquer momento. Não temos garantias definitivas. Temos algumas certezas e muitas incertezas.

De tudo, de qualquer situação, leitura ou pessoa podemos extrair alguma informação, experiência que pode nos ajudar a ampliar o nosso conhecimento, seja para confirmar o que já sabemos, seja para rejeitar determinadas visões de mundo ou para modificar o seu enfoque.

Viver é ir aprendendo a decidir da forma mais tranqüila possível entre mil possibilidades, que na sua grande maioria não se realizarão. É ir escolhendo e renunciando; ir avaliando e, ao mesmo tempo, reconhecendo que nunca temos a certeza das decisões, porque não temos a experiência do que aconteceria com as outras escolhas que deixamos de lado.

Viver é buscar permanentemente o sentido que se constrói no dia-a-dia, nas pequenas decisões. Sentido que vai revelando seu desenho em alguns momentos marcantes ou quando conseguimos enxergar mais do alto, momento em que obtemos uma perspectiva mais abrangente.

Esses momentos são fortes e nos ajudam a tentar ampliar os significados ocultos do cotidiano, quando tudo parece tão banal e repetitivo.
  • Podemos aprender a desvendar, a compreender e a aceitar os caminhos que já percorremos. Aprender a compreender e a aceitar as escolhas atuais, a permanente dúvida de estar acertando nas decisões, a incerteza do que deixamos de lado, do que poderíamos ter sido, ter feito, ter tentado. Equilibrar a manutenção de uma estrutura básica constante e de inúmeras pequenas escolhas novas, que acrescentam riqueza ao nosso presente, mas também trazem tensões e inseguranças.

  • Podemos aprender a compreender que, ao viver entre a segurança do já conhecido e a insegurança do novo, estaremos sempre abrindo novas perspectivas. E isso implica ganhos e perdas, envolve ampliação do nosso repertório e possível perda de síntese, gera dúvidas quanto a que decisões serão as melhores.

  • Podemos aprender a aceitar o fato de que viver é uma permanente prática de escolhas, de ganhos, de renúncias, de acertos e de erros, com os quais vamos construindo nosso mosaico, nosso caminho. E aceitar a precariedade de descobrir o que é permanente nas escolhas provisórias.

  • Podemos aprender a confiar em nós, quando estamos no meio de ondas gigantescas que nos jogam para todos os lados, principalmente para o chão, quando nos sentimos sacudidos por todas as partes, desorientado, sem saber para onde ir.

Somos tentados, com freqüência, a “mudar”, a “sair dos nossos trilhos”, escolhendo de forma radical o oposto do que fazemos. É difícil avaliar se são alternativas de mudança ou fugas. Há mudanças que nos ajudam a crescer e outras que nos tiram de nosso eixo.

Muitas pessoas, diante da confusão e incerteza das escolhas, optam por “viver o momento”, por “não pensar”, por “curtir a vida”. Transformam seus dias em um agito permanente, em uma movimentação feérica  atrás de gratificações contínuas. Mas percebe-se, numa análise mais profunda, que essa opção não é fruto de escolhas conscientes, mas de uma atitude fundamentalmente desesperada diante da vida. Correm para não terem que se enfrentar. Correm, porque intimamente não aceitam a si mesmas, não se gostam.

Aprendemos a viver quando navegamos na incerteza e, ao mesmo tempo, confiamos na nossa bússola, procuramos aprimorá-la e não punimos a nós mesmos por erros de pilotagem, mas, ao contrário, aprendemos com eles. Se equilibrarmos a incerteza e a confiança, encontraremos nossos melhores caminhos.

Viver significa estar de olhos abertos, aceitar-se, enfrentar decisões contraditórias e ir verificando se no todo estamos crescendo em paz e em relação. É constatar se, mesmo em situações não ideais, precárias, nós nos aceitamos melhor, se avançamos na compreensão de nós mesmos e do que nos rodeia, e se nos sentimos mais confiantes.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

OFICINAS DO JOGO: UMA PROPOSTA TRANSDISCIPLINAR


 João Batista Freire


 Olhando os últimos acontecimentos, esses que a televisão mostra como uma guerra entre o crime organizado e a polícia, em São Paulo, tenho a impressão que deixamos descuidamos tanto do nosso país, que ele se estragou. Isso inclui todos, a população, os governos e as instituições. Tem sido enorme o descaso; só cuidamos dos nossos interesses, talvez acreditando que alguém cuidaria do Brasil por nós. Fizemos como se faz com uma máquina, quando deixada de lado, abandonada a um canto, sem uso; emperra, enferruja.
            São Paulo, a capital, e outras cidades do Estado, transformaram-se em praça de guerra. As cenas apresentadas na televisão mostraram um país estragado por décadas de indiferença. Se o PCC se tornou tão poderoso é porque há espaço e ambiente para que organizações como essa floresçam. De que importam as estatísticas otimistas dos sucessivos governos; a vida no campo e na cidade está mais difícil, mesmo que haja mais energia elétrica, mais telefones, esgoto e água encanada. Nas cidades grandes não se pode sair às ruas sem medo. E o problema não se reduz ao PCC e à polícia. Começa nas casas, nas escolas, nas empresas, em todos os lugares onde a gente teria que cumprir nosso papel, agindo com eficácia e ética. Na educação, por exemplo, que é o que nos toca mais de perto, o quadro é desanimador. Todas as crianças vão à escola, mas os brasileiros – uma parte significativa - são analfabetos funcionais. O que ensinamos, não serve nem para instalar a curiosidade pelo conhecimento.
            A tragédia que assistimos nos últimos dias tem pelo menos um efeito pedagógico: avisa-nos que precisamos mudar de rumo. O PCC e seus correlatos, a polícia ineficiente, a escola que não ensina, o deputado que se corrompe, são sub-produtos da ganância pelo lucro desenfreado. O Estado brasileiro levou ao paroxismo a idéia de que tudo tem seu preço, de que tudo está à venda, inclusive, a própria nação. Brasília virou um balcão de negócios onde o produto à venda é o Brasil.
            Somos os vendilhões do templo; vendemos nosso país, deixamos que ele se estragasse. E não há nada mais a fazer para mudar isso a não ser a gente mudar nossa atitude. No caso da educação, que é onde estamos, teremos que encontrar um outro jeito de educar. Nem estou falando necessariamente de inventar um outro jeito, porque já se fez muita coisa diferente e boa no Brasil, mas que nunca foi incorporada pelo sistema oficial de ensino.
            Quero ler para vocês uma cartinha que uma aluna, uma criança de oito ou nove anos, enviou para a diretora de sua escola.

            “Eu construí um parquinho o qual achei muito bonito. Só que pena ...
            Quando acabei de construí-lo alguns meninos derrubaram a minha construção.
            Eu não gostei do comportamento deles”.

            Reparem como está bem escrita. E reparem também como a carta evidencia sua iniciativa, seu poder de criticar e de agir com autonomia. Só que essas palavras foram escritas por uma menina que há pouco mais de um ano não sabia ler nem escrever. Ela está na terceira série atualmente e escreve com essa qualidade, mas é comum que nas escolas de bairros de gente economicamente empobrecida como o bairro em que ela mora, as crianças avancem até à terceira ou quarta-série sem saber ler e escrever.
            Quando o trabalho que realizamos na escola onde essa menina estuda começou, o que ela apresentava não permitia aos seus professores prever um bom avanço das crianças. Vejam o que a professora de classe pensava sobre os alunos da turma dessa aluna antes de serem iniciados os trabalhos das Oficinas do Jogo.


“Temos crianças com sérios problemas na aprendizagem, que não conseguem nem acompanhar o ritmo da turma, nem reconhecem as letras. É um caso bem complicado. Temos uma criança com sérios problemas de agressividade perante as outras  crianças e até mesmo com a professora. Temos um aluno  que está passando por problemas pessoais bem graves,(suspeita de envolvimento em abuso sexual) tendo que  depor em delegacia. E  isso tem prejudicado demais, ele se desestimulou e não tem mais interesse em participar em nenhuma atividade. Temos uma  aluna que resiste muito ao carinho e não aceita que lhe toquem.  Nossa turma tem os  temperamentos mais diversos: alguma alunas mais egocêntricas, que não gostam de dividir material nem ajudar os amigos,outras mais  solidárias e  mais  tímidas  e  os mais descontraídos que  participam ativamente.


            Meses após serem iniciadas as aulas das Oficinas do Jogo, a mesma professora depôs sobre as crianças. Talvez ela nem se lembrasse do que disse a respeito do alunos no início.

“Com as atividades realizadas nas Oficinas do Jogo, ocorreram mudanças significativas no processo de aprendizagem dos alunos. Na aprendizagem eles evoluíram bem. Criança em estágio inicial de alfabetização se desenvolveu bem. Ficou visível seu desempenho nas atividades escolares. Com relação à alfabetização, percebemos grandes mudanças. As saídas de estudo (passeios nos pontos históricos de Florianópolis, visitas a museus e ao morro), e em seguida as construções realizadas pelas crianças sobre os referidos temas, fizeram com que eles desenvolvessem a noção de localização e espaço, trabalhando muito a geografia. O mais importante é que quando construíam o mercado público, eles conseguiam destacar detalhes importantes da arquitetura (como as duas torres do mercado público) e transpor para o brinquedo. A turma evoluiu bastante! Eles tornaram-se super educados e super comportados, os limites apareceram, estavam mais calmos. No início do ano tínhamos uma criança com sérios problemas de agressividade, com o decorrer das Oficinas do Jogo, começou a respeitar mais seus companheiros, participava ativamente. Enfim eles produziam com mais gosto e com mais vontade. As Oficinas do jogo trouxeram bastante benefício com relação ao respeito com os colegas. Eles estão em processo de transição estão amadurecendo muito. Antes das Oficinas eles tinham muita resistência com alguns alunos e esta resistência diminuiu bastante. A contribuição mais significativa das Oficinas do Jogo, acredito ser o despertar para a realização das atividades escolares. De uns tempos para cá a turma está produzindo consideravelmente bem. De uma maneira geral, todos participam e têm prazer em realizar as tarefas. Estão com um potencial e energia espetaculares”.


            Nesse trabalho, pesquisamos, tanto o desenvolvimento das crianças, acompanhando e registrando suas atividades, quanto as impressões das professoras e coordenadoras. Nesse depoimento da professora, por exemplo, quantos dados importantes! Entre outras coisas, ela fala do progresso moral e social de seus alunos. Isso, mais a melhora no desempenho escolar me pareceu o que mais a impressionou.

Comecei a investir essa pedagogia em1980. Minha preocupação era maior com a questão do pensamento da criança. Dá para perceber, na fala da professora, que o trabalho repercute muito em outros planos, por exemplo, nos planos moral e social. Isso traduz nossa preocupação de preparar um programa de ensino que vá além dos conteúdos tradicionais da escola. Para nós, não basta ensinar os conteúdos de sempre, ligados somente ao pensamento lógico-matemático. As questões morais, sociais, afetivas, estéticas e motoras são tão importantes quanto as questões intelectuais. É possível ensinar a lidar com as emoções, a expressar-se corporalmente, a ter mais sensibilidade, a cooperar, tanto quanto ensinar português e matemática. E isso deveria ser matéria escolar.
            
Não foi só a menina, cuja carta transcrevi, que aprendeu a ler e a escrever; todas as crianças da turma tiveram progressos semelhantes, todas foram capazes de escrever sobre os acontecimentos das Oficinas do Jogo.
            
Talvez esses resultados não fossem surpreendentes se se tratasse de um projeto específico de alfabetização, mas não era. Essa criança, assim como as outras da classe, teve aulas de Educação Física, de acordo com esse projeto chamado Oficinas do Jogo. Aplicamos a idéia de que as práticas do jogo teriam que fortalecer os instrumentos de compreensão da realidade, seja essa realidade as aulas de classe, seja a relação com as outras crianças e outras pessoas da escola e fora dela, seja a relação emocional, e assim por diante.
            Tudo começou em 1980. Eu entrara no Mestrado em Educação Física da USP e queria mostrar que um programa de Educação Física pode ser um poderoso instrumento de educação. As coordenações motoras teriam enorme intimidade com as coordenações intelectuais, eu acreditava, e era preciso demonstrar isso. Se feitas de um certo jeito, as aulas de Educação Física poderiam produzir forte repercussão, por exemplo, na formação do pensamento das crianças.
            Quando me dirigi a uma escola pública na cidade de São Bernardo do Campo, na grande São Paulo, constatei o que os estudos mais recentes confirmavam: os índices de fracasso escolar eram desanimadores e se traduziam, naquele tempo, por reprovações em massa. Fiz uma verificação sobre o nível de pensamento lógico-matemático em crianças da primeira série do Ensino Fundamental e confirmei uma realidade que se mantém intacta entre os alunos da rede pública hoje: boa parte deles não tem instrumentos intelectuais suficientes para dar conta do programa de primeira série. E aí, ou os alunos são reprovados ou aprovados artificialmente, mesmo sem assimilar os conteúdos. E esse prejuízo é transferido para a série seguinte, e assim por diante, até um ponto em que a defasagem de conhecimentos se torna crônica.
            Naquela escola de São Bernardo do Campo, entre os anos de 1980 e 1981, passei a dar aulas de Educação Física para as crianças da primeira série, aplicando um programa que tinha por objetivo diminuir ou eliminar essa defasagem. A única alternativa era fazer com que as crianças que não apresentavam um nível de pensamento suficiente para seguir o programa da primeira série, o adquirissem. Esse pensamento é composto por noções como as de seriação, classificação, conservação, reversibilidade, reciprocidade e comparação, entre outros. Mas elas teriam que conseguir esse avanço jogando, isto é, praticando brincadeiras, entre elas, os jogos de construção, os jogos simbólicos e as brincadeiras populares. Minha hipótese era a de que as coordenações mobilizadas na prática corporal eram as mesmas que as coordenações mentais, só que em planos diferentes. O problema era conseguir que essas coordenações ou conhecimentos, que se revelavam no plano do fazer, chegassem ao plano mental, ao plano do compreender. As coisas que fazemos na prática são fortemente limitadas ao espaço e ao tempo da ação, ou seja, são localizadas e tornam-se prisioneiras do contexto onde ocorrem. Se puderem chegar ao plano da compreensão, rompem esses limites e espalham-se, não se sabe até onde, mas tornam-se fonte de novos conhecimentos.
            Naquela experiência de São Bernardo, o problema foi resolvido, pois os jogos não eram simples repetições mecânicas de movimentos, mas atividades carregadas de significados, em grupos, repletas de dúvidas e de conflitos. As crianças não conseguiam jogar se não se articulassem entre elas, se não organizassem os materiais, se não resolvessem os problemas que iam surgindo, de forma que o material da motricidade se traduzisse em material do pensamento – da lógica da ação motora, à lógica do pensamento. O resultado final é que, na avaliação seguinte, meses depois, quase todos os alunos daquela turma apresentaram significativa melhora quanto ao pensamento lógico-matemático, e isso repercutiu muito positivamente nas demais disciplinas da escola.
            De lá para cá venho trabalhando no mesmo tema. Minha idéia é produzir um programa que possa ser aplicado de maneira extensiva na escola, e não mais como uma experiência isolada. Mas, para isso, eu precisava envolver um número significativo de escolas e de alunos, de maneira a demonstrar que a experiência de São Bernardo não havia sido um acidente, um caso isolado, porém, uma nova possibilidade educacional.
            Foi assim que, no ano de 2004, eu já morando em Florianópolis, iniciamos nossa primeira experiência na cidade, em uma escola municipal no Morro do Horário, logo seguida por outra, estadual, no pé do Morro da Penitenciária. Ambas mostraram, desde o início, que tínhamos um campo fértil de trabalho. As primeiras aulas foram tão animadoras que resolvemos, eu, a Professora Atagy Feijó, da escola Osvaldo Galupo, no Morro do Horário, e o Prof. Ciro Gohda, da Escola Hilda Teodoro, no pé do Morro da Penitenciária, estender a experiência a outros professores e professoras, e escolas. E foi assim que abrimos, no CEFID da UDESC, um grupo de estudos. Diferente dos tradicionais grupos acadêmicos, este seria integrado por qualquer pessoa que quisesse estudar, sem as burocracias da Universidade. E os professores da rede de ensino aderiram de pronto à idéia. Hoje somos mais de trinta e o projeto passou a ser chamado de Oficinas do Jogo. Todos aprendem e todos ensinam. Os professores chegam com sua enorme bagagem de conhecimentos trazida do cotidiano escolar e a Universidade entra com suas possibilidades de teorizar a respeito da pedagogia.
            O projeto Oficinas do Jogo tornou-se um trabalho, tanto de extensão universitária, quanto de ensino e pesquisa. Todas as aulas realizadas pelos professores do projeto, a partir do momento em que implantam as Oficinas do Jogo, são registradas e pesquisadas. Praticamos uma modalidade de pesquisa chamada Pesquisa-Ação. E os primeiros resultados, já os temos, fruto da pesquisa feita nas escolas Osvaldo Galupo e Hilda Teodoro. Foram tão positivos quanto os conseguidos em São Bernardo, só que ampliados. Os depoimentos colhidos entre alunos, professores e coordenadores da escola Hilda Teodoro, são semelhantes ao da escola do Morro do Horácio. As crianças mostraram resultados maravilhosos, todas alfabetizadas.
            A educação tem compromissos, no nosso caso, laços com a sociedade, não exatamente tal qual ela é, em todos os seus aspectos. Em parte trabalha-se, em educação, para que as coisas boas do nosso mundo sejam fortalecidas; em parte para que as coisas ruins sejam eliminadas, corrigidas, substituídas. Há muita riqueza no mundo, mas ela é mal distribuída. A natureza é pródiga, e nem sempre respeitada. Há muita gente sofrendo por causa da acumulação de lucros e riquezas. A miséria se espalha pelas chamadas periferias. E a natureza sofre sucessivos ataques, também por causa dessa ambição desenfreada pelo lucro. A educação, com o progresso dos meios de educação, ampliou-se, vem pela televisão, pelo rádio, pelas festas, pelos jornais, pela música, enfim, por todos os meios de comunicação, que hoje são tantos e tão eficazes. Mas nem por isso a escola deixou de ser forte. Continua exercendo enorme influência entre os jovens, para o bem ou para o mal. Basta ver o tempo que uma criança passa dentro da escola, pelo menos quatro horas por dia. Isso representa mais que a exposição a qualquer outro meio. No entanto, a escola não consegue dar conta de educar para corrigir as desigualdades, para preservar o meio ambiente.
            De minha parte, acredito que os currículos são insuficientes e inadequados. Não são feitos para os que mais padecem com as injustiças. Com o que se aprende nas escolas e do modo como as escolas ensinam, as populações injustiçadas não se emanciparão. Pena, porque é na escola que todos, obrigatoriamente, têm que ir.
            De um lado, a escola, que foi inventada na idade média, pouco se alterou. Era impulsionada pela disciplina, pela severidade. Os castigos eram recurso do cotidiano. Depois de tantos séculos, os métodos pouco se alteraram. Os castigos já não são mais físicos e, sem eles, é difícil educar dentro de uma estrutura ainda medieval. De outro lado, naquilo que foi alterada, com a inclusão progressiva do conhecimento científico, mas apenas de um certo conhecimento científico, a escola deixa de lado conhecimentos indispensáveis à formação para a autonomia. As pessoas precisam de autonomia para dar conta de viver com liberdade, com independência, com responsabilidade. Mas a educação é para o controle, para a submissão. Portanto, é preciso inventar um outro jeito de ensinar, um outro modelo de currículo.
            Foi a nossa opção por educar para fazer um outro tipo de currículo, que supra as necessidades de uma educação para a autonomia, que gerou o projeto Oficinas do Jogo. Logo percebemos que precisávamos de pontos fortes de referência. Sabemos que ninguém ensina nada se o aluno não estiver prestando atenção ao conteúdo que se quer ensinar. Esse é um ponto crucial: é preciso mobilizar a atenção para algum ponto específico, evitando a dispersão. Nos decidimos pela beleza; as coisas bonitas mobilizam a atenção. Uma aula bonita, um cenário de aula bonito resolveriam esse ponto fundamental. Tantos séculos se passaram e a escola não atentou para esse detalhe. Apenas construímos materiais de aula bonitos, coloridos, chamativos e as crianças passaram a não mais se dispersar, a quererem estar na aula. Optamos por um segundo ponto de referência, algo que movesse os alunos a realizar as atividades e aprenderem. Uma referência que estava o tempo todo à disposição: o jogo. Vizinho da beleza, é de tal forma atraente, que a criança não se cansa de repeti-lo. Portanto, as Oficinas do Jogo constituem um cenário lúdico de extrema beleza para a criança. E foi assim que conseguimos que nossos alunos queiram fazer as aulas. Salvo algum caso patológico que possa surgir, não nos incomodam os transtornos de desatenção e hiperatividade.
            O jogo tem tudo a ver com a criança. Com as outras pessoas também, mas parece que, do ponto de vista ambiental, a criança compõe mais fortemente um ambiente favorável às manifestações do jogo. Crianças brincam, e não deveriam ser impedidas de fazê-lo. É até o caso de pensarmos se é possível educar crianças sem respeitar sua condição de criança. Talvez esse seja um ponto crucial: a escola insiste em não respeitar esse princípio. Encerra o aluno como prisioneiro em estreitos espaços de carteira e mesa, impedindo as manifestações de riso e choro e movimento que, no jogo, são típicos.
            Há muito o que aprender no jogo. Jogo é descompromisso com as necessidades. Ninguém joga quando come para matar a fome. Mas a gente joga quando a comida não tem esse compromisso dramático com a fome. Talvez ninguém aprenda direito quando tem que aprender português para preencher uma obrigação com a escola. Mas talvez todos o aprendessem se fosse aprendido jogando, sem obrigações, mas apenas porque é uma brincadeira, porque, para a criança, não soe como alguma coisa necessária. E isso se poderia dizer da matemática ou de qualquer outra disciplina. Quem sabe aprender a pensar não seja mais importante que aprender as técnicas dessas disciplinas? A matéria de português que vai cair na prova valendo notas não gera autonomia. Mas o pensamento que produz a compreensão da língua portuguesa, sim. E a adesão à aprendizagem certamente seria mais benéfica que a obrigação de aprender.
    Não há obrigação de aprender nas Oficinas do Jogo. Os alunos sequer percebem que aprendem, eles apenas jogam. Os professores e professoras que orientam as crianças sugerem temas de aula ou deixam que as crianças os sugiram enquanto brincam. Por exemplo, o tema sugerido pode ser a construção, com o material disponível, de uma casa, de um bairro, da cidade ou partes dela, e assim por diante. Nesse caso, trata-se de atividades que chamamos de jogos de construções e jogos simbólicos. Antes de mais nada há uma conversa com as crianças, de modo que, falando sobre o tema, elas produzam imagens, representem essa realidade sugerida nos temas, falem sobre ela. Ou seja, antes mesmo da prática, há uma representação, uma certa tomada de consciência, um distanciamento de uma realidade que, no cotidiano, é vivida pelas crianças. Em seguida passa-se às construções, quando as crianças escolhem o material, discutem o que fazer, entram em conflitos sobre como será a casa, ou o bairro, até chegarem a acordos, estabelecerem regras e, finalmente, concluir a atividade. Durante esse processo, a imaginação funciona intensamente, os alunos realizam as representações necessárias ao projeto da construção e vivem a oportunidade, pela segunda vez, de tomar consciência desse cotidiano vivido por elas, graças ao distanciamento tomado quando das representações. Feito isto, a professora conversa com eles sobre suas construções, pede detalhes, faz perguntas, de modo a provocar novas representações, novas tomadas de consciência. Mais tarde, findos os trabalhos práticos, na escola ou em casa, os alunos ficam com a tarefa de escrever, às vezes desenhar, a respeito de suas construções. Ou seja, mais um momento privilegiado de representações.
            É assim que se passa da ação prática à representação. E é por isso que eu disse que as crianças sequer percebem o que estão aprendendo. Claro que, conscientemente, mesmo sem concluir isso, aprendem a fazer a tarefa que se propuseram, tanto é que há um resultado final, isto é, uma construção pronta. Mas essa prática não revela o que está por trás de tudo isso, qual seja, as aprendizagens decorrentes dos conflitos para definir que tipo de casa de construirá, que são aprendizagens de ordem social e moral, assim como não se vê o que ocorre no plano afetivo, uma vez que as representações do cotidiano mobilizam uma gama variada de emoções, elaboradas em função do objetivo do jogo, bem como a prática não traduz com clareza a lógica do pensamento que conduz à solução dos problemas decorrentes do jogo. A aparência do jogo revela, isso sim, os movimentos corporais, os gestos que o jogo exige, geralmente muito sutis, pois se trata de construções. Esses gestos são coordenados em função de objetivos e, essas coordenações, visíveis nos movimentos corporais, são da mesma ordem que as demais coordenações envolvidas no jogo e não reveladas, como as morais, as sociais, as intelectuais e afetivas. São da mesma ordem, mas realizadas em planos diferentes.
            Durante uma atividade como essa, como se viu na descrição, as crianças que realizam uma prática de jogos de construção e jogos simbólicos, precisam, antes, durante e após a construção, representar intensamente essas práticas, ou seja, os cotidianos traduzidos nesses jogos. Essas representações, produtoras de tomadas de consciência, levam à compreensão daquilo que foi feito, não digo compreensões plenas, mas pelo menos parciais. Compreensão não quer dizer, exatamente, no caso de crianças tão novas, ter idéias claras sobre os significados das casas, dos bairros, da cidade, das tramas da vida que cada um leva no seu cotidiano. Ou ainda, uma percepção clara a respeito dos modos de fazer cada detalhe das atividades, ou dos processos de elaboração das regras, e assim por diante. O importante não é isso, mas sim, que as crianças refletem durante as atividades, enfrentam desafios, superam os conflitos quando das dificuldades, têm dúvidas, solucionam problemas. E isso as ensina a pensar, a cooperar, a resolver conflitos com os colegas, a coordenar melhor os gestos, a lidar com as emoções, a renunciar, e assim por diante. São esses saberes que, em outras ocasiões, encontram oportunidades de se aplicar, e é por isso que há tanta repercussão positiva em outras aprendizagens de outros momentos escolares.
            As Oficinas do Jogo não vivem só de jogos de construção e jogos simbólicos ou de faz-de-conta. As brincadeiras populares, de modo geral, são praticadas pelas crianças durante as aulas. Sempre que possível, os materiais das Oficinas são adaptados para todas elas. Por exemplo, num jogo tradicional como o Caça ao Tesouro, as pistas podem ser fornecidas pelos materiais. Em uma das estações, pode haver a indicação de que os alunos devem seguir até um ponto em que haja uma caixa vermelha em forma de triângulo. Noutra estação, pode-se indicar uma bola não amarela, pequena e pesada, etc. Usando apenas uma corda, a aula pode ser de pular corda com todas as variações possíveis, desde que cada variação ultrapasse a prática anterior em graus de complexidade (a respeito dos materiais das Oficinas do Jogo, ver os livros Educação como prática corporal, e Educação de corpo inteiro, de autoria de João Batista Freire, Editora Scipione).
            O ambiente lúdico é extremamente favorável à aprendizagem, mas não à aprendizagem em seus moldes mais tradicionais, quando, o que se espera dos alunos é que apenas se conformem a um modelo burocrático de transmissão de conteúdos, perguntas e respostas. Em hipótese alguma o ambiente lúdico está de acordo com a mecânica da preparação para os vestibulares, uma espécie de chantagem intelectual, na qual, se os alunos não se ajustarem ao modelo cruel de responder exatamente o cai na prova, serão duramente castigados.
            Quando a escola estrutura um ambiente lúdico para seus alunos, como ocorre nas Oficinas do Jogo, é preciso ter clareza quanto ao que significa jogar. Até onde é possível, é preciso ter liberdade para jogar. Porém, que se entenda que o jogo ensina, não necessariamente para o bem. Ou seja, o jogo não é, nem para o bem, nem para o mal. Deixado absolutamente livre, pode seguir por caminhos imprevisíveis e indesejados. Mas o jogador não sabe disso. Envolvido pela trama lúdica, vai, às vezes, até onde o terreno é perigoso, danoso e destrutivo. Assim são muitos dos jogos adultos. Pessoas destroem a vida em volta de uma roleta. Quem definirá rumos para o jogo, de modo a conduzi-lo para o bem (até onde podemos saber sobre isso), é a conduta ética dos professores e professoras. Costumamos entender que é um bem fazer coisas que estejam de acordo com o viver bem, com o viver mais, com o viver amorosamente. Costumamos acreditar que, se as crianças praticarem jogos coletivos e, para isso, tiverem que construir relações cooperativas, isso é um bem. Costumamos acreditar que, se nossos alunos forem levados, pelo jogo, a elaborar suas emoções a ponto de não serem violentos com os colegas, isso é um bem. Costumamos acreditar que, se as crianças construírem as regras de seus jogos, isso é um bem moral. Gostamos de ver os gestos finos e desembaraçados quando os alunos praticam jogos bem orientados. E nada mais realizador que perceber o modo inteligente como resolvem os problemas surgidos no jogo, quando são propostos também de forma inteligente pelos professores. Sabemos como se enchem de orgulho os bons professores, quando ouvem a maneira desembaraçada e crítica de seus alunos que aprenderam a se expressar bem sobre diversos assuntos.
            Os resultados conclusivos que temos até o momento, naquelas turmas de alunos que passaram períodos longos em atividades das Oficinas do Jogo, são muito positivos, muito animadores. As referências de bom desenvolvimento são, entre outras coisas, o modo como resolvem seus problemas e alcançam os objetivos dos jogos, a maneira como falam sobre suas práticas, os registros dos professores das Oficinas, os depoimentos dos professores de sala, das coordenadoras pedagógicas e diretoras, etc. Esse conjunto de dados nos permite supor que, de fato, houve um desenvolvimento significativo das crianças, em vários planos, quer seja no plano motor, quanto no afetivo, no moral, no social ou no intelectual. Tudo indica que, aquilo que nos propusemos fazer, realmente ocorreu, isto é, os alunos que participaram das Oficinas do Jogo tiveram seus instrumentos para lidar, de maneira bastante autônoma, com situações de sua vida, incluindo a escolar, fortalecidos. Ao final de um ano de trabalho eram capazes de dar conta das tarefas propostas pela escola. Supomos que, além da escola, também serão capazes de lidar melhor com as situações, mas isso é apenas uma suposição que nos escapa ao controle.
            Quando brincam nas Oficinas do Jogo, aquilo que é tão funesto nas rotinas escolares, qual seja, a obrigação, e apenas obrigação, é amenizado, tanto quanto possível. Não somos partidários da idéia de que crianças, por serem crianças, devem exclusivamente brincar, sem se submeter à obrigatoriedade de certas tarefas. Não. Achamos que deve haver uma mescla entre trabalho e jogo. Se as pessoas apenas jogassem, apenas usufruiriam, isto é, retirariam coisas para si, sem precisar repor, e, em algum tempo, os recursos se esgotariam. Por isso é preciso trabalhar, é preciso submeter-se às tarefas para suprir necessidades. Mas isso pode ser feito num ambiente lúdico, de maneira que as necessidades, por exemplo, de aprender, sejam conduzidas pela motivação de jogar.
            Jogar, na escola, tem inúmeras vantagens. Durante as rotinas obrigatórias, não é interessante arriscar, pois os erros são punidos severamente (tira-se notas ruins, perde-se o ano escolar, e assim por diante). Porém, durante os jogos, os riscos não trazem conseqüências ruins, pois os maus resultados podem ser corrigidos nas próximas repetições. O jogo não é à vera, como dizem as crianças, é à brinca. É muito interessante observar no jogo como as crianças o repetem. E repetindo tanto, as coisas são aperfeiçoadas. Quando aperfeiçoadas, quando feitas com facilidade, constituem a base para novos investimentos, outras maneiras de jogar, de arriscar, de ir adiante. E por esse aspecto que o jogo constitui um belíssimo motor do progresso.
            Nas Oficinas do Jogo as crianças são tratadas como crianças e essa condição torna-se uma forte referência para o ensino/aprendizagem. A gente procurou criar um ambiente em que ser criança na escola é possível. Fico imaginando porque a escola tradicional continua alimentando a ilusão de que consegue ensinar crianças tratando-as como adultos.
            Ensinar não é fácil, porque aprender é difícil. Aprender é difícil, não só porque envolve tramas intelectuais complexas, mas porque envolve outras dimensões, todas as dimensões humanas. Emocionalmente, aprender implica em renunciar a um estado atual de adaptação para alcançar um outro estado, à frente. Ou seja, aprender é deixar de ser o que se é, para ser alguma outra coisa que se desconhece. É uma forma de renúncia, e isso é difícil, é conflituoso. Melhor não aprender, melhor ficar como está, a menos que a aprendizagem seja muito necessária, ou ... muito atraente. No caso do jogo, a aprendizagem é muito atraente. Somos, como todos os organismos, conservadores, tendemos a permanecer tal qual somos, a menos que algo exterior a nós provoque uma pressão forte por mudanças inevitáveis. Quando isso acontece, as imperfeições que temos são denunciadas. Somos seres imperfeitos, incompletos, inacabados. Sempre que algo novo surge, essa imperfeição é denunciada, essa incompletude clama por preenchimento. O organismo pede que realizemos isso, que incorporemos algo que satisfaça a novidade, isto é, que aprendamos. Mas, como a tendência é para a conservação, é preciso que a aprendizagem seja movida por forte atração, ou por forte coação. A escola tradicional sempre optou pela coação. As Oficinas do Jogo, entre outras propostas educacionais, optou pela atração. Vencer os obstáculos da aprendizagem, viver o sofrimento da renúncia, típico das aprendizagens, exige poderosas motivações, no nosso caso, encontradas na beleza e no lúdico.