quarta-feira, 7 de setembro de 2011

OFICINAS DO JOGO: UMA PROPOSTA TRANSDISCIPLINAR


 João Batista Freire


 Olhando os últimos acontecimentos, esses que a televisão mostra como uma guerra entre o crime organizado e a polícia, em São Paulo, tenho a impressão que deixamos descuidamos tanto do nosso país, que ele se estragou. Isso inclui todos, a população, os governos e as instituições. Tem sido enorme o descaso; só cuidamos dos nossos interesses, talvez acreditando que alguém cuidaria do Brasil por nós. Fizemos como se faz com uma máquina, quando deixada de lado, abandonada a um canto, sem uso; emperra, enferruja.
            São Paulo, a capital, e outras cidades do Estado, transformaram-se em praça de guerra. As cenas apresentadas na televisão mostraram um país estragado por décadas de indiferença. Se o PCC se tornou tão poderoso é porque há espaço e ambiente para que organizações como essa floresçam. De que importam as estatísticas otimistas dos sucessivos governos; a vida no campo e na cidade está mais difícil, mesmo que haja mais energia elétrica, mais telefones, esgoto e água encanada. Nas cidades grandes não se pode sair às ruas sem medo. E o problema não se reduz ao PCC e à polícia. Começa nas casas, nas escolas, nas empresas, em todos os lugares onde a gente teria que cumprir nosso papel, agindo com eficácia e ética. Na educação, por exemplo, que é o que nos toca mais de perto, o quadro é desanimador. Todas as crianças vão à escola, mas os brasileiros – uma parte significativa - são analfabetos funcionais. O que ensinamos, não serve nem para instalar a curiosidade pelo conhecimento.
            A tragédia que assistimos nos últimos dias tem pelo menos um efeito pedagógico: avisa-nos que precisamos mudar de rumo. O PCC e seus correlatos, a polícia ineficiente, a escola que não ensina, o deputado que se corrompe, são sub-produtos da ganância pelo lucro desenfreado. O Estado brasileiro levou ao paroxismo a idéia de que tudo tem seu preço, de que tudo está à venda, inclusive, a própria nação. Brasília virou um balcão de negócios onde o produto à venda é o Brasil.
            Somos os vendilhões do templo; vendemos nosso país, deixamos que ele se estragasse. E não há nada mais a fazer para mudar isso a não ser a gente mudar nossa atitude. No caso da educação, que é onde estamos, teremos que encontrar um outro jeito de educar. Nem estou falando necessariamente de inventar um outro jeito, porque já se fez muita coisa diferente e boa no Brasil, mas que nunca foi incorporada pelo sistema oficial de ensino.
            Quero ler para vocês uma cartinha que uma aluna, uma criança de oito ou nove anos, enviou para a diretora de sua escola.

            “Eu construí um parquinho o qual achei muito bonito. Só que pena ...
            Quando acabei de construí-lo alguns meninos derrubaram a minha construção.
            Eu não gostei do comportamento deles”.

            Reparem como está bem escrita. E reparem também como a carta evidencia sua iniciativa, seu poder de criticar e de agir com autonomia. Só que essas palavras foram escritas por uma menina que há pouco mais de um ano não sabia ler nem escrever. Ela está na terceira série atualmente e escreve com essa qualidade, mas é comum que nas escolas de bairros de gente economicamente empobrecida como o bairro em que ela mora, as crianças avancem até à terceira ou quarta-série sem saber ler e escrever.
            Quando o trabalho que realizamos na escola onde essa menina estuda começou, o que ela apresentava não permitia aos seus professores prever um bom avanço das crianças. Vejam o que a professora de classe pensava sobre os alunos da turma dessa aluna antes de serem iniciados os trabalhos das Oficinas do Jogo.


“Temos crianças com sérios problemas na aprendizagem, que não conseguem nem acompanhar o ritmo da turma, nem reconhecem as letras. É um caso bem complicado. Temos uma criança com sérios problemas de agressividade perante as outras  crianças e até mesmo com a professora. Temos um aluno  que está passando por problemas pessoais bem graves,(suspeita de envolvimento em abuso sexual) tendo que  depor em delegacia. E  isso tem prejudicado demais, ele se desestimulou e não tem mais interesse em participar em nenhuma atividade. Temos uma  aluna que resiste muito ao carinho e não aceita que lhe toquem.  Nossa turma tem os  temperamentos mais diversos: alguma alunas mais egocêntricas, que não gostam de dividir material nem ajudar os amigos,outras mais  solidárias e  mais  tímidas  e  os mais descontraídos que  participam ativamente.


            Meses após serem iniciadas as aulas das Oficinas do Jogo, a mesma professora depôs sobre as crianças. Talvez ela nem se lembrasse do que disse a respeito do alunos no início.

“Com as atividades realizadas nas Oficinas do Jogo, ocorreram mudanças significativas no processo de aprendizagem dos alunos. Na aprendizagem eles evoluíram bem. Criança em estágio inicial de alfabetização se desenvolveu bem. Ficou visível seu desempenho nas atividades escolares. Com relação à alfabetização, percebemos grandes mudanças. As saídas de estudo (passeios nos pontos históricos de Florianópolis, visitas a museus e ao morro), e em seguida as construções realizadas pelas crianças sobre os referidos temas, fizeram com que eles desenvolvessem a noção de localização e espaço, trabalhando muito a geografia. O mais importante é que quando construíam o mercado público, eles conseguiam destacar detalhes importantes da arquitetura (como as duas torres do mercado público) e transpor para o brinquedo. A turma evoluiu bastante! Eles tornaram-se super educados e super comportados, os limites apareceram, estavam mais calmos. No início do ano tínhamos uma criança com sérios problemas de agressividade, com o decorrer das Oficinas do Jogo, começou a respeitar mais seus companheiros, participava ativamente. Enfim eles produziam com mais gosto e com mais vontade. As Oficinas do jogo trouxeram bastante benefício com relação ao respeito com os colegas. Eles estão em processo de transição estão amadurecendo muito. Antes das Oficinas eles tinham muita resistência com alguns alunos e esta resistência diminuiu bastante. A contribuição mais significativa das Oficinas do Jogo, acredito ser o despertar para a realização das atividades escolares. De uns tempos para cá a turma está produzindo consideravelmente bem. De uma maneira geral, todos participam e têm prazer em realizar as tarefas. Estão com um potencial e energia espetaculares”.


            Nesse trabalho, pesquisamos, tanto o desenvolvimento das crianças, acompanhando e registrando suas atividades, quanto as impressões das professoras e coordenadoras. Nesse depoimento da professora, por exemplo, quantos dados importantes! Entre outras coisas, ela fala do progresso moral e social de seus alunos. Isso, mais a melhora no desempenho escolar me pareceu o que mais a impressionou.

Comecei a investir essa pedagogia em1980. Minha preocupação era maior com a questão do pensamento da criança. Dá para perceber, na fala da professora, que o trabalho repercute muito em outros planos, por exemplo, nos planos moral e social. Isso traduz nossa preocupação de preparar um programa de ensino que vá além dos conteúdos tradicionais da escola. Para nós, não basta ensinar os conteúdos de sempre, ligados somente ao pensamento lógico-matemático. As questões morais, sociais, afetivas, estéticas e motoras são tão importantes quanto as questões intelectuais. É possível ensinar a lidar com as emoções, a expressar-se corporalmente, a ter mais sensibilidade, a cooperar, tanto quanto ensinar português e matemática. E isso deveria ser matéria escolar.
            
Não foi só a menina, cuja carta transcrevi, que aprendeu a ler e a escrever; todas as crianças da turma tiveram progressos semelhantes, todas foram capazes de escrever sobre os acontecimentos das Oficinas do Jogo.
            
Talvez esses resultados não fossem surpreendentes se se tratasse de um projeto específico de alfabetização, mas não era. Essa criança, assim como as outras da classe, teve aulas de Educação Física, de acordo com esse projeto chamado Oficinas do Jogo. Aplicamos a idéia de que as práticas do jogo teriam que fortalecer os instrumentos de compreensão da realidade, seja essa realidade as aulas de classe, seja a relação com as outras crianças e outras pessoas da escola e fora dela, seja a relação emocional, e assim por diante.
            Tudo começou em 1980. Eu entrara no Mestrado em Educação Física da USP e queria mostrar que um programa de Educação Física pode ser um poderoso instrumento de educação. As coordenações motoras teriam enorme intimidade com as coordenações intelectuais, eu acreditava, e era preciso demonstrar isso. Se feitas de um certo jeito, as aulas de Educação Física poderiam produzir forte repercussão, por exemplo, na formação do pensamento das crianças.
            Quando me dirigi a uma escola pública na cidade de São Bernardo do Campo, na grande São Paulo, constatei o que os estudos mais recentes confirmavam: os índices de fracasso escolar eram desanimadores e se traduziam, naquele tempo, por reprovações em massa. Fiz uma verificação sobre o nível de pensamento lógico-matemático em crianças da primeira série do Ensino Fundamental e confirmei uma realidade que se mantém intacta entre os alunos da rede pública hoje: boa parte deles não tem instrumentos intelectuais suficientes para dar conta do programa de primeira série. E aí, ou os alunos são reprovados ou aprovados artificialmente, mesmo sem assimilar os conteúdos. E esse prejuízo é transferido para a série seguinte, e assim por diante, até um ponto em que a defasagem de conhecimentos se torna crônica.
            Naquela escola de São Bernardo do Campo, entre os anos de 1980 e 1981, passei a dar aulas de Educação Física para as crianças da primeira série, aplicando um programa que tinha por objetivo diminuir ou eliminar essa defasagem. A única alternativa era fazer com que as crianças que não apresentavam um nível de pensamento suficiente para seguir o programa da primeira série, o adquirissem. Esse pensamento é composto por noções como as de seriação, classificação, conservação, reversibilidade, reciprocidade e comparação, entre outros. Mas elas teriam que conseguir esse avanço jogando, isto é, praticando brincadeiras, entre elas, os jogos de construção, os jogos simbólicos e as brincadeiras populares. Minha hipótese era a de que as coordenações mobilizadas na prática corporal eram as mesmas que as coordenações mentais, só que em planos diferentes. O problema era conseguir que essas coordenações ou conhecimentos, que se revelavam no plano do fazer, chegassem ao plano mental, ao plano do compreender. As coisas que fazemos na prática são fortemente limitadas ao espaço e ao tempo da ação, ou seja, são localizadas e tornam-se prisioneiras do contexto onde ocorrem. Se puderem chegar ao plano da compreensão, rompem esses limites e espalham-se, não se sabe até onde, mas tornam-se fonte de novos conhecimentos.
            Naquela experiência de São Bernardo, o problema foi resolvido, pois os jogos não eram simples repetições mecânicas de movimentos, mas atividades carregadas de significados, em grupos, repletas de dúvidas e de conflitos. As crianças não conseguiam jogar se não se articulassem entre elas, se não organizassem os materiais, se não resolvessem os problemas que iam surgindo, de forma que o material da motricidade se traduzisse em material do pensamento – da lógica da ação motora, à lógica do pensamento. O resultado final é que, na avaliação seguinte, meses depois, quase todos os alunos daquela turma apresentaram significativa melhora quanto ao pensamento lógico-matemático, e isso repercutiu muito positivamente nas demais disciplinas da escola.
            De lá para cá venho trabalhando no mesmo tema. Minha idéia é produzir um programa que possa ser aplicado de maneira extensiva na escola, e não mais como uma experiência isolada. Mas, para isso, eu precisava envolver um número significativo de escolas e de alunos, de maneira a demonstrar que a experiência de São Bernardo não havia sido um acidente, um caso isolado, porém, uma nova possibilidade educacional.
            Foi assim que, no ano de 2004, eu já morando em Florianópolis, iniciamos nossa primeira experiência na cidade, em uma escola municipal no Morro do Horário, logo seguida por outra, estadual, no pé do Morro da Penitenciária. Ambas mostraram, desde o início, que tínhamos um campo fértil de trabalho. As primeiras aulas foram tão animadoras que resolvemos, eu, a Professora Atagy Feijó, da escola Osvaldo Galupo, no Morro do Horário, e o Prof. Ciro Gohda, da Escola Hilda Teodoro, no pé do Morro da Penitenciária, estender a experiência a outros professores e professoras, e escolas. E foi assim que abrimos, no CEFID da UDESC, um grupo de estudos. Diferente dos tradicionais grupos acadêmicos, este seria integrado por qualquer pessoa que quisesse estudar, sem as burocracias da Universidade. E os professores da rede de ensino aderiram de pronto à idéia. Hoje somos mais de trinta e o projeto passou a ser chamado de Oficinas do Jogo. Todos aprendem e todos ensinam. Os professores chegam com sua enorme bagagem de conhecimentos trazida do cotidiano escolar e a Universidade entra com suas possibilidades de teorizar a respeito da pedagogia.
            O projeto Oficinas do Jogo tornou-se um trabalho, tanto de extensão universitária, quanto de ensino e pesquisa. Todas as aulas realizadas pelos professores do projeto, a partir do momento em que implantam as Oficinas do Jogo, são registradas e pesquisadas. Praticamos uma modalidade de pesquisa chamada Pesquisa-Ação. E os primeiros resultados, já os temos, fruto da pesquisa feita nas escolas Osvaldo Galupo e Hilda Teodoro. Foram tão positivos quanto os conseguidos em São Bernardo, só que ampliados. Os depoimentos colhidos entre alunos, professores e coordenadores da escola Hilda Teodoro, são semelhantes ao da escola do Morro do Horácio. As crianças mostraram resultados maravilhosos, todas alfabetizadas.
            A educação tem compromissos, no nosso caso, laços com a sociedade, não exatamente tal qual ela é, em todos os seus aspectos. Em parte trabalha-se, em educação, para que as coisas boas do nosso mundo sejam fortalecidas; em parte para que as coisas ruins sejam eliminadas, corrigidas, substituídas. Há muita riqueza no mundo, mas ela é mal distribuída. A natureza é pródiga, e nem sempre respeitada. Há muita gente sofrendo por causa da acumulação de lucros e riquezas. A miséria se espalha pelas chamadas periferias. E a natureza sofre sucessivos ataques, também por causa dessa ambição desenfreada pelo lucro. A educação, com o progresso dos meios de educação, ampliou-se, vem pela televisão, pelo rádio, pelas festas, pelos jornais, pela música, enfim, por todos os meios de comunicação, que hoje são tantos e tão eficazes. Mas nem por isso a escola deixou de ser forte. Continua exercendo enorme influência entre os jovens, para o bem ou para o mal. Basta ver o tempo que uma criança passa dentro da escola, pelo menos quatro horas por dia. Isso representa mais que a exposição a qualquer outro meio. No entanto, a escola não consegue dar conta de educar para corrigir as desigualdades, para preservar o meio ambiente.
            De minha parte, acredito que os currículos são insuficientes e inadequados. Não são feitos para os que mais padecem com as injustiças. Com o que se aprende nas escolas e do modo como as escolas ensinam, as populações injustiçadas não se emanciparão. Pena, porque é na escola que todos, obrigatoriamente, têm que ir.
            De um lado, a escola, que foi inventada na idade média, pouco se alterou. Era impulsionada pela disciplina, pela severidade. Os castigos eram recurso do cotidiano. Depois de tantos séculos, os métodos pouco se alteraram. Os castigos já não são mais físicos e, sem eles, é difícil educar dentro de uma estrutura ainda medieval. De outro lado, naquilo que foi alterada, com a inclusão progressiva do conhecimento científico, mas apenas de um certo conhecimento científico, a escola deixa de lado conhecimentos indispensáveis à formação para a autonomia. As pessoas precisam de autonomia para dar conta de viver com liberdade, com independência, com responsabilidade. Mas a educação é para o controle, para a submissão. Portanto, é preciso inventar um outro jeito de ensinar, um outro modelo de currículo.
            Foi a nossa opção por educar para fazer um outro tipo de currículo, que supra as necessidades de uma educação para a autonomia, que gerou o projeto Oficinas do Jogo. Logo percebemos que precisávamos de pontos fortes de referência. Sabemos que ninguém ensina nada se o aluno não estiver prestando atenção ao conteúdo que se quer ensinar. Esse é um ponto crucial: é preciso mobilizar a atenção para algum ponto específico, evitando a dispersão. Nos decidimos pela beleza; as coisas bonitas mobilizam a atenção. Uma aula bonita, um cenário de aula bonito resolveriam esse ponto fundamental. Tantos séculos se passaram e a escola não atentou para esse detalhe. Apenas construímos materiais de aula bonitos, coloridos, chamativos e as crianças passaram a não mais se dispersar, a quererem estar na aula. Optamos por um segundo ponto de referência, algo que movesse os alunos a realizar as atividades e aprenderem. Uma referência que estava o tempo todo à disposição: o jogo. Vizinho da beleza, é de tal forma atraente, que a criança não se cansa de repeti-lo. Portanto, as Oficinas do Jogo constituem um cenário lúdico de extrema beleza para a criança. E foi assim que conseguimos que nossos alunos queiram fazer as aulas. Salvo algum caso patológico que possa surgir, não nos incomodam os transtornos de desatenção e hiperatividade.
            O jogo tem tudo a ver com a criança. Com as outras pessoas também, mas parece que, do ponto de vista ambiental, a criança compõe mais fortemente um ambiente favorável às manifestações do jogo. Crianças brincam, e não deveriam ser impedidas de fazê-lo. É até o caso de pensarmos se é possível educar crianças sem respeitar sua condição de criança. Talvez esse seja um ponto crucial: a escola insiste em não respeitar esse princípio. Encerra o aluno como prisioneiro em estreitos espaços de carteira e mesa, impedindo as manifestações de riso e choro e movimento que, no jogo, são típicos.
            Há muito o que aprender no jogo. Jogo é descompromisso com as necessidades. Ninguém joga quando come para matar a fome. Mas a gente joga quando a comida não tem esse compromisso dramático com a fome. Talvez ninguém aprenda direito quando tem que aprender português para preencher uma obrigação com a escola. Mas talvez todos o aprendessem se fosse aprendido jogando, sem obrigações, mas apenas porque é uma brincadeira, porque, para a criança, não soe como alguma coisa necessária. E isso se poderia dizer da matemática ou de qualquer outra disciplina. Quem sabe aprender a pensar não seja mais importante que aprender as técnicas dessas disciplinas? A matéria de português que vai cair na prova valendo notas não gera autonomia. Mas o pensamento que produz a compreensão da língua portuguesa, sim. E a adesão à aprendizagem certamente seria mais benéfica que a obrigação de aprender.
    Não há obrigação de aprender nas Oficinas do Jogo. Os alunos sequer percebem que aprendem, eles apenas jogam. Os professores e professoras que orientam as crianças sugerem temas de aula ou deixam que as crianças os sugiram enquanto brincam. Por exemplo, o tema sugerido pode ser a construção, com o material disponível, de uma casa, de um bairro, da cidade ou partes dela, e assim por diante. Nesse caso, trata-se de atividades que chamamos de jogos de construções e jogos simbólicos. Antes de mais nada há uma conversa com as crianças, de modo que, falando sobre o tema, elas produzam imagens, representem essa realidade sugerida nos temas, falem sobre ela. Ou seja, antes mesmo da prática, há uma representação, uma certa tomada de consciência, um distanciamento de uma realidade que, no cotidiano, é vivida pelas crianças. Em seguida passa-se às construções, quando as crianças escolhem o material, discutem o que fazer, entram em conflitos sobre como será a casa, ou o bairro, até chegarem a acordos, estabelecerem regras e, finalmente, concluir a atividade. Durante esse processo, a imaginação funciona intensamente, os alunos realizam as representações necessárias ao projeto da construção e vivem a oportunidade, pela segunda vez, de tomar consciência desse cotidiano vivido por elas, graças ao distanciamento tomado quando das representações. Feito isto, a professora conversa com eles sobre suas construções, pede detalhes, faz perguntas, de modo a provocar novas representações, novas tomadas de consciência. Mais tarde, findos os trabalhos práticos, na escola ou em casa, os alunos ficam com a tarefa de escrever, às vezes desenhar, a respeito de suas construções. Ou seja, mais um momento privilegiado de representações.
            É assim que se passa da ação prática à representação. E é por isso que eu disse que as crianças sequer percebem o que estão aprendendo. Claro que, conscientemente, mesmo sem concluir isso, aprendem a fazer a tarefa que se propuseram, tanto é que há um resultado final, isto é, uma construção pronta. Mas essa prática não revela o que está por trás de tudo isso, qual seja, as aprendizagens decorrentes dos conflitos para definir que tipo de casa de construirá, que são aprendizagens de ordem social e moral, assim como não se vê o que ocorre no plano afetivo, uma vez que as representações do cotidiano mobilizam uma gama variada de emoções, elaboradas em função do objetivo do jogo, bem como a prática não traduz com clareza a lógica do pensamento que conduz à solução dos problemas decorrentes do jogo. A aparência do jogo revela, isso sim, os movimentos corporais, os gestos que o jogo exige, geralmente muito sutis, pois se trata de construções. Esses gestos são coordenados em função de objetivos e, essas coordenações, visíveis nos movimentos corporais, são da mesma ordem que as demais coordenações envolvidas no jogo e não reveladas, como as morais, as sociais, as intelectuais e afetivas. São da mesma ordem, mas realizadas em planos diferentes.
            Durante uma atividade como essa, como se viu na descrição, as crianças que realizam uma prática de jogos de construção e jogos simbólicos, precisam, antes, durante e após a construção, representar intensamente essas práticas, ou seja, os cotidianos traduzidos nesses jogos. Essas representações, produtoras de tomadas de consciência, levam à compreensão daquilo que foi feito, não digo compreensões plenas, mas pelo menos parciais. Compreensão não quer dizer, exatamente, no caso de crianças tão novas, ter idéias claras sobre os significados das casas, dos bairros, da cidade, das tramas da vida que cada um leva no seu cotidiano. Ou ainda, uma percepção clara a respeito dos modos de fazer cada detalhe das atividades, ou dos processos de elaboração das regras, e assim por diante. O importante não é isso, mas sim, que as crianças refletem durante as atividades, enfrentam desafios, superam os conflitos quando das dificuldades, têm dúvidas, solucionam problemas. E isso as ensina a pensar, a cooperar, a resolver conflitos com os colegas, a coordenar melhor os gestos, a lidar com as emoções, a renunciar, e assim por diante. São esses saberes que, em outras ocasiões, encontram oportunidades de se aplicar, e é por isso que há tanta repercussão positiva em outras aprendizagens de outros momentos escolares.
            As Oficinas do Jogo não vivem só de jogos de construção e jogos simbólicos ou de faz-de-conta. As brincadeiras populares, de modo geral, são praticadas pelas crianças durante as aulas. Sempre que possível, os materiais das Oficinas são adaptados para todas elas. Por exemplo, num jogo tradicional como o Caça ao Tesouro, as pistas podem ser fornecidas pelos materiais. Em uma das estações, pode haver a indicação de que os alunos devem seguir até um ponto em que haja uma caixa vermelha em forma de triângulo. Noutra estação, pode-se indicar uma bola não amarela, pequena e pesada, etc. Usando apenas uma corda, a aula pode ser de pular corda com todas as variações possíveis, desde que cada variação ultrapasse a prática anterior em graus de complexidade (a respeito dos materiais das Oficinas do Jogo, ver os livros Educação como prática corporal, e Educação de corpo inteiro, de autoria de João Batista Freire, Editora Scipione).
            O ambiente lúdico é extremamente favorável à aprendizagem, mas não à aprendizagem em seus moldes mais tradicionais, quando, o que se espera dos alunos é que apenas se conformem a um modelo burocrático de transmissão de conteúdos, perguntas e respostas. Em hipótese alguma o ambiente lúdico está de acordo com a mecânica da preparação para os vestibulares, uma espécie de chantagem intelectual, na qual, se os alunos não se ajustarem ao modelo cruel de responder exatamente o cai na prova, serão duramente castigados.
            Quando a escola estrutura um ambiente lúdico para seus alunos, como ocorre nas Oficinas do Jogo, é preciso ter clareza quanto ao que significa jogar. Até onde é possível, é preciso ter liberdade para jogar. Porém, que se entenda que o jogo ensina, não necessariamente para o bem. Ou seja, o jogo não é, nem para o bem, nem para o mal. Deixado absolutamente livre, pode seguir por caminhos imprevisíveis e indesejados. Mas o jogador não sabe disso. Envolvido pela trama lúdica, vai, às vezes, até onde o terreno é perigoso, danoso e destrutivo. Assim são muitos dos jogos adultos. Pessoas destroem a vida em volta de uma roleta. Quem definirá rumos para o jogo, de modo a conduzi-lo para o bem (até onde podemos saber sobre isso), é a conduta ética dos professores e professoras. Costumamos entender que é um bem fazer coisas que estejam de acordo com o viver bem, com o viver mais, com o viver amorosamente. Costumamos acreditar que, se as crianças praticarem jogos coletivos e, para isso, tiverem que construir relações cooperativas, isso é um bem. Costumamos acreditar que, se nossos alunos forem levados, pelo jogo, a elaborar suas emoções a ponto de não serem violentos com os colegas, isso é um bem. Costumamos acreditar que, se as crianças construírem as regras de seus jogos, isso é um bem moral. Gostamos de ver os gestos finos e desembaraçados quando os alunos praticam jogos bem orientados. E nada mais realizador que perceber o modo inteligente como resolvem os problemas surgidos no jogo, quando são propostos também de forma inteligente pelos professores. Sabemos como se enchem de orgulho os bons professores, quando ouvem a maneira desembaraçada e crítica de seus alunos que aprenderam a se expressar bem sobre diversos assuntos.
            Os resultados conclusivos que temos até o momento, naquelas turmas de alunos que passaram períodos longos em atividades das Oficinas do Jogo, são muito positivos, muito animadores. As referências de bom desenvolvimento são, entre outras coisas, o modo como resolvem seus problemas e alcançam os objetivos dos jogos, a maneira como falam sobre suas práticas, os registros dos professores das Oficinas, os depoimentos dos professores de sala, das coordenadoras pedagógicas e diretoras, etc. Esse conjunto de dados nos permite supor que, de fato, houve um desenvolvimento significativo das crianças, em vários planos, quer seja no plano motor, quanto no afetivo, no moral, no social ou no intelectual. Tudo indica que, aquilo que nos propusemos fazer, realmente ocorreu, isto é, os alunos que participaram das Oficinas do Jogo tiveram seus instrumentos para lidar, de maneira bastante autônoma, com situações de sua vida, incluindo a escolar, fortalecidos. Ao final de um ano de trabalho eram capazes de dar conta das tarefas propostas pela escola. Supomos que, além da escola, também serão capazes de lidar melhor com as situações, mas isso é apenas uma suposição que nos escapa ao controle.
            Quando brincam nas Oficinas do Jogo, aquilo que é tão funesto nas rotinas escolares, qual seja, a obrigação, e apenas obrigação, é amenizado, tanto quanto possível. Não somos partidários da idéia de que crianças, por serem crianças, devem exclusivamente brincar, sem se submeter à obrigatoriedade de certas tarefas. Não. Achamos que deve haver uma mescla entre trabalho e jogo. Se as pessoas apenas jogassem, apenas usufruiriam, isto é, retirariam coisas para si, sem precisar repor, e, em algum tempo, os recursos se esgotariam. Por isso é preciso trabalhar, é preciso submeter-se às tarefas para suprir necessidades. Mas isso pode ser feito num ambiente lúdico, de maneira que as necessidades, por exemplo, de aprender, sejam conduzidas pela motivação de jogar.
            Jogar, na escola, tem inúmeras vantagens. Durante as rotinas obrigatórias, não é interessante arriscar, pois os erros são punidos severamente (tira-se notas ruins, perde-se o ano escolar, e assim por diante). Porém, durante os jogos, os riscos não trazem conseqüências ruins, pois os maus resultados podem ser corrigidos nas próximas repetições. O jogo não é à vera, como dizem as crianças, é à brinca. É muito interessante observar no jogo como as crianças o repetem. E repetindo tanto, as coisas são aperfeiçoadas. Quando aperfeiçoadas, quando feitas com facilidade, constituem a base para novos investimentos, outras maneiras de jogar, de arriscar, de ir adiante. E por esse aspecto que o jogo constitui um belíssimo motor do progresso.
            Nas Oficinas do Jogo as crianças são tratadas como crianças e essa condição torna-se uma forte referência para o ensino/aprendizagem. A gente procurou criar um ambiente em que ser criança na escola é possível. Fico imaginando porque a escola tradicional continua alimentando a ilusão de que consegue ensinar crianças tratando-as como adultos.
            Ensinar não é fácil, porque aprender é difícil. Aprender é difícil, não só porque envolve tramas intelectuais complexas, mas porque envolve outras dimensões, todas as dimensões humanas. Emocionalmente, aprender implica em renunciar a um estado atual de adaptação para alcançar um outro estado, à frente. Ou seja, aprender é deixar de ser o que se é, para ser alguma outra coisa que se desconhece. É uma forma de renúncia, e isso é difícil, é conflituoso. Melhor não aprender, melhor ficar como está, a menos que a aprendizagem seja muito necessária, ou ... muito atraente. No caso do jogo, a aprendizagem é muito atraente. Somos, como todos os organismos, conservadores, tendemos a permanecer tal qual somos, a menos que algo exterior a nós provoque uma pressão forte por mudanças inevitáveis. Quando isso acontece, as imperfeições que temos são denunciadas. Somos seres imperfeitos, incompletos, inacabados. Sempre que algo novo surge, essa imperfeição é denunciada, essa incompletude clama por preenchimento. O organismo pede que realizemos isso, que incorporemos algo que satisfaça a novidade, isto é, que aprendamos. Mas, como a tendência é para a conservação, é preciso que a aprendizagem seja movida por forte atração, ou por forte coação. A escola tradicional sempre optou pela coação. As Oficinas do Jogo, entre outras propostas educacionais, optou pela atração. Vencer os obstáculos da aprendizagem, viver o sofrimento da renúncia, típico das aprendizagens, exige poderosas motivações, no nosso caso, encontradas na beleza e no lúdico.

           

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